sábado, 8 de abril de 2017

O ano do barco

No ano de 1962, Bartolomeu Sozinho tinha vinte anos. Para ele, irremediável sonhador, aquele foi o ano do barco. Nessa altura, ainda vivia à beira-mar. A dois oceanos de distância, o transatlântico Infante D. Henrique iniciava a sua viagem inaugural na chamada rota ultramarina.
Quase um mês depois, em Porto Amélia, hoje rebatizada Pemba, o navio ficou ao largo, por ausência de cais na cidade. Pequenas lanchas iam e vinham numa azáfama jamais vista naquela baía. Os portugueses desembarcavam encavalitados nas costas de homens negros para não molharem os pés.
Bartolomeu trabalhava na oficina do seu avô, mas, nesse dia, faltou ao serviço. No princípio da manhã ofereceu-se para carregar passageiros e, depois disso, passou o resto da manhã na praia a contemplar o navio. Nunca tinha visto nada que o tivesse fascinado tanto. Aquela era uma criatura híbrida entre água e terra, entre peixe e ave, entre casa e ilha. Passaram horas e o céu escureceu.
No momento em que Bartolomeu decidiu regressar a casa, aconteceu o milagre. As luzes do navio se acenderam e, de súbito, uma cidade emergiu, ainda molhada, do ventre do oceano. Bartolomeu ficou pasmado e, nesse estado arrelampado, balbuciou vezes sem conta a mesma ladainha como se estivesse rezando para um deus ainda por nascer:
Oxalá esse barco não saia nunca daqui.
Em casa já se tinha jantado e o jovem confessou ao irmão que, ao fim da tarde, em plena praia, lhe descera a visão: o navio era uma ave pernalta e que tinha quebrado as pernas de encontro aos recifes, ao tentar levantar voo da baía de Pemba. O irmão sentenciou:
Eu sei o que se passa nessa sua cabecinha. É escusado, mano: você nunca pisará aquele barco. Pé de preto pisa canoa.
O avô corrigiu. Que ele se enganava. Milhares de negros tinham saído de suas vidas para entrar em navios de longo curso. Durante centenas de anos embarcaram para nunca mais voltar. E repisou, marcando as sílabas com o cachimbo:
Não se esqueçam de que fomos escravos.
Quem me dera ser escravo e ir num barco — murmurou Bartolomeu de modo a que ninguém o escutasse.
Antes de adormecer, ele ainda regressou à janela para ver o navio aceso de encontro às trevas. E, de novo, suplicou:
Uma perna! Deus queira que parta uma perna.
No dia seguinte foi acordado em sobressalto: a súplica resultara. Uma avaria paralisara o paquete. Não tardou que uma lancha desembarcasse na praia, em missão de emergência: necessitavam de apoio de quem soubesse de mecânica. Acontecera o imprevisto: o mecânico principal do navio estava incapaz, delirando em altas febres. A malária atingira também os assistentes. O avô aprontou uma caixa de material e disse para o neto:
Venha comigo.
Bartolomeu entrou no navio como quem desembarca em solo lunar. Olhos embaciados de maravilhamento, pés flutuando sobre a realidade, foi passeando pelo convés enquanto o avô desceu à casa das máquinas.
O jovem olhou a linha de costa e tentou identificar a sua residência, mas o casario, dali, era uma colmeia indistinta e isso lhe trouxe um inesperado desejo de lonjura. O calor arrancava do chão ondulações de ar, como fumos de miragem. E lhe pareceu, de repente, que a Vila ficara submersa em água e que a geografia do mundo se invertera entre oceano e continente.
Todavia, o mar é o habilidoso desenhador de ausências. O balanço do navio fez adormecer o visitador, que se ajeitou num canto do convés. E o jovem Bartolomeu sonhou que a sua aldeia natal se convertia num barco e se lançava no altíssimo mar. E clamava, no alto da proa: “Vejam! Terra de preto virou navio, estamos navegando nos infinitos oceanos!”.
Vozes alvoroçadas emergiram do porão e despertaram o miúdo sonhador: um acidente tinha ocorrido na sala das máquinas e o avô tinha-se magoado ao tentar fazer mais do que sabia. Ficou com um braço inutilizado. O médico de bordo tomou conta do caso e decidiu-se que a Companhia Colonial de Navegação assumiria a responsabilidade pelos tratamentos. O avô foi conduzido para Lourenço Marques. E o neto acompanhou-o. No caminho, o comandante engraçou com Bartolomeu Sozinho. Prometeu que lhe daria teto, escola, metropolitano destino. Foi assim que tudo começou.
Na viagem seguinte, o jovem ajudante de mecânico embarcou e, até ao fim do regime colonial, continuou embarcando. De cada vez que embarcava mais ele se alonjava de si mesmo.
No intervalo das marítimas canseiras, já no sossego da varanda de sua casa, os vizinhos lhe perguntavam:
E o mar é grande, Bartolomeu?
Não é que seja tão grande assim. Os continentes é que estão muito afastados — respondia.
No final da primeira viagem, os familiares lhe confessaram: receberam tão choruda indemnização aquando do acidente com o avô que agora todos rezavam para que ele, Bartolomeu Sozinho, sofresse de um penoso percalço. Foi nesse momento que ele decidiu mudar de terra. Escolheu uma povoação que lhe lembrava a visão enevoada da costa quando espreitava do convés. Escolheu Vila Cacimba.
Mia Couto, in Venenos de Deus, remédios do Diabo

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