sábado, 15 de abril de 2017

Magris no elevador

Em uma carta de 1948, Graciliano Ramos compara o trabalho do escritor à rotina das lavadeiras. Fala das velhas lavadeiras alagoanas que, inclinadas sobre a água, em um ritual hipnótico, dão uma primeira lavada em suas roupas, torcem-nas, molham novamente, voltam a torcer, em um teatro sem fim. Só depois elas mergulham a roupa no anil e, enfim, a ensaboam. Mas tudo recomeça. Diz Graciliano: “Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota”. Da repetição interminável, arrancam a existência.
As palavras de Graciliano me chegam em outra carta, despachada do Recife pelo escritor Fernando Monteiro. Eu a uso, agora, como um marcador de páginas, enquanto leio O senhor vai entender (Companhia das Letras, tradução de Maurício Santana Dias), novela do italiano Claudio Magris. A carta de meu amigo contém outra ideia de Graciliano: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. Embaralhando os dois pensamentos, arrisco-me a pensar: com as palavras, lavamos nossa vida.
Uma lenta fricção, esfrega paciente da linguagem, dirige a novela de Claudio Magris. Fricção, ficção: palavras que se aproximam e que, no caso de Magris, se equivalem. A história da mulher que, recolhida a uma casa de repouso, rememora o dia em que o marido, sem sucesso, tentou libertá-la, ressoa à batida suave das lavadeiras. O livro é um longo (e errático) monólogo da mulher dirigido ao presidente da instituição. Autoridade sem nome, cuja existência ela apenas supõe, mas que, ainda assim, empresta um destino às suas palavras.
Fricção, ficção, infecção: uma infecção grave levou a mulher a se internar. Na casa de repouso, supõe-se que esteja livre dos riscos do mundo exterior. A narradora de Magris descobre, contudo, que, também na reclusão da Casa, a vida não se ordena. Conclui, então, que o mundo é uma ilusão, em que miragens se permutam. Uma espécie de espelho sem moldura e sem limite. “Suponhamos que estamos atrás do espelho, mas que esse reverso é também um espelho, igual ao outro”, ela sugere. Também dentro da Casa, as coisas mentem, se dissimulam e mudam de cor. Onde está a cópia? Onde o original? O mundo de Claudio Magris é como esses espelhos paralelos que decoram as paredes dos elevadores e que reproduzem (devoram), ao infinito, os que neles se observam.
Às vezes, a mulher se esforça para acreditar que a Verdade, apesar de tudo, se esconde na assepsia da clínica. Poeta, o homem muitas vezes crê que ela está em sua poesia. A mulher, por fim, conclui que nem a Casa estanca a infecção de existir nem a poesia deixa de ser, ela também, um veneno. Este mundo espelhado reproduz a relação amorosa entre eles, com seus êxtases e suspiros, mas também seus achaques e horrores. Amor adoentado do qual, apesar disso, nenhum dos dois deseja abdicar.
O homem a ama ou apenas teme a solidão? Era a mulher quem cortava, corrigia, limpava seus versos, sempre derramados e prolixos. Era, arrisco-me a pensar, uma “lavadeira literária”, que esfregava versos contaminados pelo câncer das palavras. Para a mulher, uma poesia não tem autor. “Não é o poeta que cria a palavra. É a poesia que tomba sobre ele e o faz poeta”, diz. Também a poesia vem da desordem. O miserável poeta não passa de um veículo, que a transmite, mas não a domina. “As canções, até as suas, se confundem na algaravia e no murmúrio”, a mulher diz.
Algaravia – “palavra-curinga” que carrega múltiplos sentidos. Algaravia é, em princípio, a língua árabe, mas a palavra fala também das línguas ininteligíveis e, ainda, das coisas difíceis de compreender. Para a mulher, o homem só consegue escrever “versos soltos e selvagens, como as buzinas pelas ruas”. Era ela, mulher, quem o livrava (o castrava) e era dessa castração – corte violento e sem piedade – que o poema surgia. A mulher impunha uma ordem no falatório e no murmúrio. Uma vez doente, e impotente, vê seu homem exposto à fala das “sirigaitas” – mulheres espevitadas e astutas que enfeitiçam o macho com o saracotear das palavras e cujo exemplo mais célebre é a Sherazade, de As mil e uma noites.
A semelhança entre a Casa e o mundo exterior evoca, ainda, “O alienista”, o famoso conto de Machado de Assis. Qual o lugar dos loucos: dentro ou fora do asilo? Como combater uma infecção: no abrigo e na clausura ou sob as luzes do mundo? “Não há uma grande diferença entre a Casa e o lá fora”, sustenta por fim a mulher, já exausta de pensar. Nem dentro nem fora existe a felicidade. A ideia de felicidade arrasta consigo tudo o que nos falta. A felicidade é a falta.
As reflexões dos personagens de Claudio Magris me conduzem de volta a Onde encontrar a sabedoria?, antigo ensaio de Harold Bloom. Outro dia falei de Bloom – e nomes grudam. Diz ele que os que esperam a felicidade deveriam se contentar com a sabedoria, pois só ela corresponde ao que nos falta. Não: o contrário da infelicidade não é a felicidade. É o saber. A sabedoria não traz conforto, e pode até trazer alguma aflição, Bloom adverte. Não adoça as coisas e nos conduz a um lugar de efervescência e espanto, que se situa entre a tragédia e a ironia. Nesse vão (como a Senhora D., de Hilda Hilst, metida no vão de sua escada), sem as exigências do passado e sem as ilusões do futuro, o que nos resta é a vida. Em outras palavras: o ato. Bloom recorda, a propósito, uma advertência sutil do rabino Tarphon, que de fato vem a calhar: “Não sois obrigado a concluir a obra, mas tampouco estais livre para dela desistir”.
Lugar doloroso, em que o ato se sobrepõe à esperança. Espaço que os dois personagens de Claudio Magris relutam em aceitar e que insistem em dividir entre o fora e o dentro. Mas, como mostram as lavadeiras de Graciliano, dedicadas à bela dança de bater e bater suas roupas, não há fora, não há dentro – há apenas o meio. O fazer. A rigor, não existe, sequer, diferença entre sujar e lavar. Tudo é ato, tudo se repete, e nos consola. Tudo o que temos está aqui.
José Castello, in Sábados inquietos

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