sábado, 15 de abril de 2017

Crime & castigo

O remorso é quando o filme (silencioso) da memória põe-se a repetir a mesma cena e fica o pobre ator a representá-la para sempre.
Um exemplo? Aí vai ele. É um simples faz de conta: não te assustes. Estás à cabeceira da tua velha tia Filomena e eis que resolves apressar-lhe a herança. Tinhas de dar-lhe cinco gotas de meia em meia hora e dás-lhe cinquenta de supetão. Ora, o que vês na tela implacável é a contagem das primeiras gotas inocentes... e agora não podes, não podes nunca mais parar!
Será isso o inferno? Esse inevitável mecanismo de repetição?
Em todo caso, todos já devem estar mais ou menos preparados para esses requintes infernais, graças àquele famoso disco em que o cantor repete umas 37 ou 38 vezes, sem ao menos variar de entonação: — Eu te amo! Eu te amo! Eu te...
Neste ponto, um anjo segreda-me sonsamente ao ouvido:
Mas quem sabe se a gravação não estará com defeito?
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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