O
remorso é quando o filme (silencioso) da memória põe-se a repetir
a mesma cena e fica o pobre ator a representá-la para sempre.
Um
exemplo? Aí vai ele. É um simples faz de conta: não te assustes.
Estás à cabeceira da tua velha tia Filomena e eis que resolves
apressar-lhe a herança. Tinhas de dar-lhe cinco gotas de meia em
meia hora e dás-lhe cinquenta de supetão. Ora, o que vês na tela
implacável é a contagem das primeiras gotas inocentes... e agora
não podes, não podes nunca mais parar!
Será
isso o inferno? Esse inevitável mecanismo de repetição?
Em
todo caso, todos já devem estar mais ou menos preparados para esses
requintes infernais, graças àquele famoso disco em que o cantor
repete umas 37 ou 38 vezes, sem ao menos variar de entonação: —
Eu te amo! Eu te amo! Eu te...
Neste
ponto, um anjo segreda-me sonsamente ao ouvido:
— Mas
quem sabe se a gravação não estará com defeito?
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
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