terça-feira, 25 de abril de 2017

Conversa com a matriarca

Aos 91 anos minha avó Samara tentou usar aparelhos auditivos. O par de geringonças lhe cobria as orelhas e dava-lhe ao rosto uma expressão de telegrafista assustada com uma péssima notícia.
Por vaidade, deixou o cabelo grisalho crescer para esconder os aparelhos. E o mais incrível é que passou a ouvir menos do que antes e a ouvir coisas que ninguém dizia.
Desconfiamos disso na tarde em que Samara ficou uns cinco minutos em silêncio durante uma reunião de família. Logo ela, que não parava de falar, alternando o árabe com o português, ou misturando-os numa algaravia que nos deixava em dúvida sobre o que queria dizer. Às vezes não queria dizer nada, e sim confundir os nove filhos com aporias ou argumentos absurdos, de modo que triunfava nas discussões sobre assuntos que desconhecia ou não lhe interessavam.
Mas nos cinco minutos de silêncio o mundo parou de existir. E, quando ela retomou a palavra, desfiou uma conversa tão desmiolada, que meus tios se entreolharam, imaginando alguma anomalia na cabeça da matriarca.
A coisa piorou num almoço de domingo. Enquanto ela comia calada, percebemos que se irritava com alguma coisa. De repente largou o garfo, mergulhou a cabeça no mormaço e bateu palma. Quando fez esse gesto pela terceira vez, um dos meus tios lhe perguntou:
O que foi, mãe? Quem a senhora está aplaudindo?”
E ela: “Matem todos, pelo amor de Deus. Vão me devorar…”.
Então ele tirou a geringonça dos ouvidos de sua mãe, aproximou-se do rosto dela e repetiu a pergunta.
Não tem aplauso nenhum”, disse Samara. “Tem é muito mosquito por aqui, isso sim. Cadê os carapanãs? Matem todos, todos…”
Não era zumbido de mosquitos, e sim o ruído de chuvisco emitido pelos aparelhos auditivos.
Jurou nunca mais usá-los. Os seis filhos homens protestaram, minha mãe e duas tias pediram calma e meu avô se retirou da sala. Ela ignorou os protestos, o clamor pela calma e a ausência do marido: pegou as duas geringonças e jogou-as no tanque das enguias.
Meu tio Sami, que tinha comprado os aparelhos no Panamá, olhou desolado o fundo limoso do tanque e perguntou em voz alta:
E agora, o que vamos fazer para a senhora ouvir?”
Falem alto. Não são homens? Gritem.”
Gritavam. E ela regia ao alvoroço como uma maestrina sem batuta, conduzindo o coral com gestos incisivos de suprema matriarca, atenta à voz de cada um de seus filhos e à da conversa, sobretudo quando esta resvalava perigosamente por algum idílio ou caça amorosa.
Quis o acaso que eu fosse um de seus netos queridos. Com os filhos ela era implacável, como são as mães de uma penca de marmanjos.
Quando os seis homens da casa se atracavam como gladiadores e berravam como camelôs em pânico, bastava um olhar da matriarca para que os vozeirões se rebaixassem a miados de angorá. Podiam brigar por dinheiro, futebol ou política, mas nunca por amor a uma mulher, já que a única mulher na vida deles era ela mesma.
É que Samara tinha ciúme até da sombra dos filhos, desde que fossem sombras femininas. Não de todos os “meninos”, só de dois, seus eternos cativos.
Nas noites de sábado esperava-os com um faro de cão adestrado. Às dez horas ela bebia meia jarra de suco de alho, nos acordava com um copo na mão e dizia: “Faz bem para o organismo, vão viver cem anos”.
Tomávamos esse purgante e nunca mais dormíamos. À meia-noite ela fazia a primeira incursão ao quarto dos dois filhos. Deixava na mesinha de cabeceira dois copos com suco de alho e molhava com querosene o pavio de uma lamparina a fim de espantar os mosquitos. No meio da madrugada, o eco de seus passos no corredor escuro acordava meu avô Elias.
Ladrão?”, o velho perguntava com a voz rouca do ronco interrompido.
Ladras”, ela respondia.
Ladras?”
Isso mesmo. Ladras. Querem roubar o amor dos nossos filhos.”
Para com isso e vem dormir, Samara.”
Mas só Elias dormia. Ela continuava a ronda, subindo e descendo a escada, movida pelo alho e pelo desejo de ser única na vida dos dois meninos.
E quando eles chegavam, ela os acompanhava até o quarto e ralhava:
Sou surda, mas não cega. Vocês ainda são muito jovens para o casamento.”
O mais velho desses jovens tinha 52 anos incompletos, e era tão alto e forte que erguia Samara com a mão esquerda e colocava-a sentada na direita. Esse gigante era tio Boulos, o Paulo: um Apolo à luz do dia e um lobo dionisíaco quando a primeira estrela espocava na noite.
O outro, tio Fares, um garoto de 48 anos. Sem esforço, era possível contar dezoito fios de cabelo em sua calvície precoce. Não tinha a pinta de Boulos, mas a voz de barítono e a lábia inquietavam minha avó.
Com essa voz tu vais longe, ela dizia na presença de todo mundo. Vai muito longe, mas só comigo.”
Os dois chegavam juntos para evitar sermões alternados. Samara ralhava com o Apolo, depois com o careca, e eles escutavam juntos e calados na porta do quarto.
Nós ríamos quase em surdina: o bafo do alho nos impedia de abrir a boca e gargalhar. Solitário em seu leito, meu avô gritava para a mulher surda:
Por Deus, Samara: isso é insano.”
Ela concordava:
É verdade, Elias: é só ciúme.”
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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