Aos
91 anos minha avó Samara tentou usar aparelhos auditivos. O par de
geringonças lhe cobria as orelhas e dava-lhe ao rosto uma expressão
de telegrafista assustada com uma péssima notícia.
Por
vaidade, deixou o cabelo grisalho crescer para esconder os aparelhos.
E o mais incrível é que passou a ouvir menos do que antes e a ouvir
coisas que ninguém dizia.
Desconfiamos
disso na tarde em que Samara ficou uns cinco minutos em silêncio
durante uma reunião de família. Logo ela, que não parava de falar,
alternando o árabe com o português, ou misturando-os numa algaravia
que nos deixava em dúvida sobre o que queria dizer. Às vezes não
queria dizer nada, e sim confundir os nove filhos com aporias ou
argumentos absurdos, de modo que triunfava nas discussões sobre
assuntos que desconhecia ou não lhe interessavam.
Mas
nos cinco minutos de silêncio o mundo parou de existir. E, quando
ela retomou a palavra, desfiou uma conversa tão desmiolada, que meus
tios se entreolharam, imaginando alguma anomalia na cabeça da
matriarca.
A
coisa piorou num almoço de domingo. Enquanto ela comia calada,
percebemos que se irritava com alguma coisa. De repente largou o
garfo, mergulhou a cabeça no mormaço e bateu palma. Quando fez esse
gesto pela terceira vez, um dos meus tios lhe perguntou:
“O
que foi, mãe? Quem a senhora está aplaudindo?”
E
ela: “Matem todos, pelo amor de Deus. Vão me devorar…”.
Então
ele tirou a geringonça dos ouvidos de sua mãe, aproximou-se do
rosto dela e repetiu a pergunta.
“Não
tem aplauso nenhum”, disse Samara. “Tem é muito mosquito por
aqui, isso sim. Cadê os carapanãs? Matem todos, todos…”
Não
era zumbido de mosquitos, e sim o ruído de chuvisco emitido pelos
aparelhos auditivos.
Jurou
nunca mais usá-los. Os seis filhos homens protestaram, minha mãe e
duas tias pediram calma e meu avô se retirou da sala. Ela ignorou os
protestos, o clamor pela calma e a ausência do marido: pegou as duas
geringonças e jogou-as no tanque das enguias.
Meu
tio Sami, que tinha comprado os aparelhos no Panamá, olhou desolado
o fundo limoso do tanque e perguntou em voz alta:
“E
agora, o que vamos fazer para a senhora ouvir?”
“Falem
alto. Não são homens? Gritem.”
Gritavam.
E ela regia ao alvoroço como uma maestrina sem batuta, conduzindo o
coral com gestos incisivos de suprema matriarca, atenta à voz de
cada um de seus filhos e à da conversa, sobretudo quando esta
resvalava perigosamente por algum idílio ou caça amorosa.
Quis
o acaso que eu fosse um de seus netos queridos. Com os filhos ela era
implacável, como são as mães de uma penca de marmanjos.
Quando
os seis homens da casa se atracavam como gladiadores e berravam como
camelôs em pânico, bastava um olhar da matriarca para que os
vozeirões se rebaixassem a miados de angorá. Podiam brigar por
dinheiro, futebol ou política, mas nunca por amor a uma mulher, já
que a única mulher na vida deles era ela mesma.
É
que Samara tinha ciúme até da sombra dos filhos, desde que fossem
sombras femininas. Não de todos os “meninos”, só de dois, seus
eternos cativos.
Nas
noites de sábado esperava-os com um faro de cão adestrado. Às dez
horas ela bebia meia jarra de suco de alho, nos acordava com um copo
na mão e dizia: “Faz bem para o organismo, vão viver cem anos”.
Tomávamos
esse purgante e nunca mais dormíamos. À meia-noite ela fazia a
primeira incursão ao quarto dos dois filhos. Deixava na mesinha de
cabeceira dois copos com suco de alho e molhava com querosene o pavio
de uma lamparina a fim de espantar os mosquitos. No meio da
madrugada, o eco de seus passos no corredor escuro acordava meu avô
Elias.
“Ladrão?”,
o velho perguntava com a voz rouca do ronco interrompido.
“Ladras”,
ela respondia.
“Ladras?”
“Isso
mesmo. Ladras. Querem roubar o amor dos nossos filhos.”
“Para
com isso e vem dormir, Samara.”
Mas
só Elias dormia. Ela continuava a ronda, subindo e descendo a
escada, movida pelo alho e pelo desejo de ser única na vida dos dois
meninos.
E
quando eles chegavam, ela os acompanhava até o quarto e ralhava:
“Sou
surda, mas não cega. Vocês ainda são muito jovens para o
casamento.”
O
mais velho desses jovens tinha 52 anos incompletos, e era tão alto e
forte que erguia Samara com a mão esquerda e colocava-a sentada na
direita. Esse gigante era tio Boulos, o Paulo: um Apolo à luz do dia
e um lobo dionisíaco quando a primeira estrela espocava na noite.
O
outro, tio Fares, um garoto de 48 anos. Sem esforço, era possível
contar dezoito fios de cabelo em sua calvície precoce. Não tinha a
pinta de Boulos, mas a voz de barítono e a lábia inquietavam minha
avó.
“Com
essa voz tu vais longe, ela dizia na presença de todo mundo. Vai
muito longe, mas só comigo.”
Os
dois chegavam juntos para evitar sermões alternados. Samara ralhava
com o Apolo, depois com o careca, e eles escutavam juntos e calados
na porta do quarto.
Nós
ríamos quase em surdina: o bafo do alho nos impedia de abrir a boca
e gargalhar. Solitário em seu leito, meu avô gritava para a mulher
surda:
“Por
Deus, Samara: isso é insano.”
Ela
concordava:
“É
verdade, Elias: é só ciúme.”
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário