O
benefício de ficar em casa no feriado, quando todo mundo viaja, está
em que não se corre o risco de se ficar preso numa pousada ouvindo o
barulho da chuva que cai e vendo a neblina que tudo cobre, mascando
tédio. Por via das dúvidas é sempre sábio levar um livro...
Chovia.
Viajei. Levei o Grande sertão: veredas. É um livro que nunca
se termina de ler. Sempre se começa de novo, de qualquer lugar. Não
entendo isso, que um livro possa ser sempre novo. A chuva desrealiza
o mundo. Nos faz entrar em devaneio. Fernando Pessoa tem um longo
poema marítimo que começa com a descrição do momento em que o
navio atracado apita rouco para anunciar que está se separando do
cais. A propósito desse mínimo espaço de água que marca a
separação entre os que ficam no cais e os que vão para o mar, ele
escreveu um dos mais fantásticos versos da língua portuguesa: “Todo
cais é uma saudade de pedra.” Um pequeno vão de água... Que
coisa mais boba! E é por isso mesmo, por ser uma coisa tão boba,
que ele fica sem entender o que o dito espaço entre navio e cais o
fazia sentir sentimentos cheios de funduras metafísicas. Digo isso a
propósito do conto de Guimarães Rosa A terceira margem do rio.
Eu o leio e releio e fico sempre com a sensação de um mistério,
mistério que se anuncia no próprio título: A terceira margem do
rio.
Rio
tem três margens? Toda criança aprende na escola que rio tem duas
margens só, a direita e a esquerda, a de cá e a de lá. É só por
causa disso que se pode atravessar o rio. Mas um rio com três
margens? Pense só. Como pode ser? Onde é que ela fica? Que canoa
pode atravessá-lo? A estória, quem a conta é o filho, sobre o pai,
homem
cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino
[...]. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário
com a gente [...]. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer
para si uma canoa. [...]
Nossa
mãe jurou muito contra a ideia. Seria que ele, que nessas artes não
vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?
Até
que a canoa ficou pronta, madeira de lei, de durar trinta anos.
“Cê
vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a
resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também [...].
Temi a ira de nossa mãe.
[Não
fui.]
Nosso
pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo
– a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso
pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a
invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio,
sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.
O
conto se constrói sobre o mistério do pai, na canoa, longe, muito
longe, e o olhar do filho que olha e não entende. Sabia uma coisa
só: que o pai o amava e o queria como companheiro, na canoa...
No
corpo do conto, mesmo, a expressão a terceira margem do rio não
acontece. Guimarães Rosa a pensou antes ou depois? Tanta coisa já
foi dita para decifrá-la! Até Hélio Pelegrino, psicanalista e
intelectual que admiro e respeito, nascido também nas Minas Gerais,
se aventurou e sugeriu que a dita terceira margem é a linguagem...
Sei não. Se leio o conto pensando nisso, ele fica fraco. Doença de
psicanalista: sempre pensa que uma coisa é outra. Mas o escritor,
quando escreve, não está pensando numa outra coisa. Se escreveu é
porque era aquilo que queria dizer. Acho que nem Guimarães Rosa
sabia das razões do título. Ele mesmo confessa que o conto lhe veio
pronto, de repente, enquanto andava, da mesma forma como a bola chega
às mãos do goleiro. Deixo para lá o Guimarães e os seus
mistérios. Interessam-me os mistérios meus que a leitura do conto
provoca quando o leio.
Foi
lá na Serra da Canastra, chuva caindo sem parar, nuvens escuras,
longas trilhas no meio dos campos, sobe morro, desce morro, em busca
de cachoeiras escondidas, o fôlego curto, o coração disparado, o
ar queimando no peito – foi lá que me passou pela cabeça que o
Guimarães estava certo. A vida é assim mesmo. Chega um momento em
que a gente manda fazer uma canoa. Canoa de um só lugar. Bem que a
gente queria a companhia de um filho. Não daria certo. Há de se
remar sozinho. De longe os outros olham com um olhar de espantados,
querendo saber das razões por que assim remamos, na solidão…
No
seu livro José e seus irmãos (Vocês devem saber. A estória
original está nas Sagradas Escrituras. Os irmãos de José, roídos
de inveja, o venderam a mercadores que iam para o Egito.)... Pois
Thomas Mann, que escreveu o dito livro, inventou um diálogo entre
José, cativo, e o mercador que o comprara. Diz José: “Estamos a
não mais que um metro um do outro. No entanto, ao teu redor gira um
universo do qual o centro és tu, e não eu. E ao meu redor gira um
universo do qual o centro sou eu, e não tu.” Guimarães Rosa
concorda. Mas teria escrito: “Cada um rema sozinho uma canoa que
navega um rio diferente, mesmo parecendo que está pertinho...”
Para complicar, eu acrescento: e nem mesmo falamos a mesma língua,
embora usemos as mesmas palavras.
Acho
que Guimarães Rosa estava filosofando. Pois o filósofo grego
Heráclito, apelidado de “o Obscuro”, escreveu que tudo é rio,
águas que passam e não voltam mais. A juventude é como aquelas
barcas que, em tempos passados, navegavam o São Francisco subindo e
descendo o rio. Vai muita gente junta, tudo é festa, todos gostam
das mesmas músicas, todos dizem as mesmas coisas, todos dançam,
todos se abraçam... Velhice é quando mandamos construir a canoa e
começamos a remar sozinhos. Não por vontade, mas por precisão.
Porque já não se entende o que os outros falam, já não se ri das
graças por que todos riem, já não se caminha com a mesma firmeza –
vai-se ficando para trás...
O
normal seria dizer: “Quem entende, sabe.” Riobaldo, mestre zen,
retrucaria com um koan: “Quem sabe, entende.” O saber vem
antes do entender. Eu já sabia: a velhice é canoagem solitária…
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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