quarta-feira, 26 de abril de 2017

A terceira margem do rio


O benefício de ficar em casa no feriado, quando todo mundo viaja, está em que não se corre o risco de se ficar preso numa pousada ouvindo o barulho da chuva que cai e vendo a neblina que tudo cobre, mascando tédio. Por via das dúvidas é sempre sábio levar um livro...
Chovia. Viajei. Levei o Grande sertão: veredas. É um livro que nunca se termina de ler. Sempre se começa de novo, de qualquer lugar. Não entendo isso, que um livro possa ser sempre novo. A chuva desrealiza o mundo. Nos faz entrar em devaneio. Fernando Pessoa tem um longo poema marítimo que começa com a descrição do momento em que o navio atracado apita rouco para anunciar que está se separando do cais. A propósito desse mínimo espaço de água que marca a separação entre os que ficam no cais e os que vão para o mar, ele escreveu um dos mais fantásticos versos da língua portuguesa: “Todo cais é uma saudade de pedra.” Um pequeno vão de água... Que coisa mais boba! E é por isso mesmo, por ser uma coisa tão boba, que ele fica sem entender o que o dito espaço entre navio e cais o fazia sentir sentimentos cheios de funduras metafísicas. Digo isso a propósito do conto de Guimarães Rosa A terceira margem do rio. Eu o leio e releio e fico sempre com a sensação de um mistério, mistério que se anuncia no próprio título: A terceira margem do rio.
Rio tem três margens? Toda criança aprende na escola que rio tem duas margens só, a direita e a esquerda, a de cá e a de lá. É só por causa disso que se pode atravessar o rio. Mas um rio com três margens? Pense só. Como pode ser? Onde é que ela fica? Que canoa pode atravessá-lo? A estória, quem a conta é o filho, sobre o pai,

homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino [...]. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente [...]. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. [...]
Nossa mãe jurou muito contra a ideia. Seria que ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?

Até que a canoa ficou pronta, madeira de lei, de durar trinta anos.

Cê vai, ocê fique, você nunca volte!” Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também [...]. Temi a ira de nossa mãe.
[Não fui.]
Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais.

O conto se constrói sobre o mistério do pai, na canoa, longe, muito longe, e o olhar do filho que olha e não entende. Sabia uma coisa só: que o pai o amava e o queria como companheiro, na canoa...
No corpo do conto, mesmo, a expressão a terceira margem do rio não acontece. Guimarães Rosa a pensou antes ou depois? Tanta coisa já foi dita para decifrá-la! Até Hélio Pelegrino, psicanalista e intelectual que admiro e respeito, nascido também nas Minas Gerais, se aventurou e sugeriu que a dita terceira margem é a linguagem... Sei não. Se leio o conto pensando nisso, ele fica fraco. Doença de psicanalista: sempre pensa que uma coisa é outra. Mas o escritor, quando escreve, não está pensando numa outra coisa. Se escreveu é porque era aquilo que queria dizer. Acho que nem Guimarães Rosa sabia das razões do título. Ele mesmo confessa que o conto lhe veio pronto, de repente, enquanto andava, da mesma forma como a bola chega às mãos do goleiro. Deixo para lá o Guimarães e os seus mistérios. Interessam-me os mistérios meus que a leitura do conto provoca quando o leio.
Foi lá na Serra da Canastra, chuva caindo sem parar, nuvens escuras, longas trilhas no meio dos campos, sobe morro, desce morro, em busca de cachoeiras escondidas, o fôlego curto, o coração disparado, o ar queimando no peito – foi lá que me passou pela cabeça que o Guimarães estava certo. A vida é assim mesmo. Chega um momento em que a gente manda fazer uma canoa. Canoa de um só lugar. Bem que a gente queria a companhia de um filho. Não daria certo. Há de se remar sozinho. De longe os outros olham com um olhar de espantados, querendo saber das razões por que assim remamos, na solidão…
No seu livro José e seus irmãos (Vocês devem saber. A estória original está nas Sagradas Escrituras. Os irmãos de José, roídos de inveja, o venderam a mercadores que iam para o Egito.)... Pois Thomas Mann, que escreveu o dito livro, inventou um diálogo entre José, cativo, e o mercador que o comprara. Diz José: “Estamos a não mais que um metro um do outro. No entanto, ao teu redor gira um universo do qual o centro és tu, e não eu. E ao meu redor gira um universo do qual o centro sou eu, e não tu.” Guimarães Rosa concorda. Mas teria escrito: “Cada um rema sozinho uma canoa que navega um rio diferente, mesmo parecendo que está pertinho...” Para complicar, eu acrescento: e nem mesmo falamos a mesma língua, embora usemos as mesmas palavras.
Acho que Guimarães Rosa estava filosofando. Pois o filósofo grego Heráclito, apelidado de “o Obscuro”, escreveu que tudo é rio, águas que passam e não voltam mais. A juventude é como aquelas barcas que, em tempos passados, navegavam o São Francisco subindo e descendo o rio. Vai muita gente junta, tudo é festa, todos gostam das mesmas músicas, todos dizem as mesmas coisas, todos dançam, todos se abraçam... Velhice é quando mandamos construir a canoa e começamos a remar sozinhos. Não por vontade, mas por precisão. Porque já não se entende o que os outros falam, já não se ri das graças por que todos riem, já não se caminha com a mesma firmeza – vai-se ficando para trás...
O normal seria dizer: “Quem entende, sabe.” Riobaldo, mestre zen, retrucaria com um koan: “Quem sabe, entende.” O saber vem antes do entender. Eu já sabia: a velhice é canoagem solitária…
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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