A
alma anda para trás, navega ao sabor do suave sopro da saudade. Quer
voltar ao seu passado. Bernardo Soares sabia, tanto assim que disse:
“O vapor em que parti chegou barco de vela ao porto.” A alma tem
nostalgia das origens. Nas novidades ela se sente estranha, exilada.
Eu, que não viajo de navio, diria: “O avião em que parti
aterrissou carro de bois nos cenários da minha infância...”
Quanta saudade mora num carro de boi! Por isso esses fantasmas de um
mundo que não mais existe gemem enquanto rodam.
A
alma dos poetas está cheia de objetos decrépitos. E é por isso que
fazem poesia, para trazê-los de novo à vida. A poesia opera
ressurreições. O professor Severino, pastor dessas velharias, ao
introduzir os seus alunos ao encanto da poesia, sugeriu que fizessem
uma lista dos sons que ouviam na sua infância e que não mais se
ouvem. O canto do galo, o canto do grilo (tão amado por Bashô!), a
música do realejo, o sino das igrejas, o apito rouco da
maria-fumaça, o crepitar do fogo no fogão de lenha, as canções de
roda cantadas pelas crianças a brincar na rua, o grito da mãe
“Menino! Sai do sereno!”, “Saudades do Matão”... “Seria
tão bom, como já foi”, lamentou a Adélia. E Fernando Pessoa se
comovia lembrando-se das tardes quando, menino, suas tias fritavam
bolinhos. E foi isso que levou T. S. Eliot a escrever que, ao final
de nossas longas andanças, chegamos finalmente ao lugar de onde
partimos. E o vemos então pela primeira vez. Para isto caminhamos a
vida inteira: para chegar ao lugar de onde partimos. E, quando
chegamos, é a surpresa. É como se nunca o tivéssemos visto. Agora,
ao final de nossas andanças, nossos olhos são outros, olhos de
velhice, de saudade. “Toda saudade é uma espécie de velhice”,
disse o Riobaldo. É por isso que os olhos dos velhos vão se
enchendo de ausências. “Memória fraca”, dizem os jovens.
Engano: é que a sua alma sabe o que merece ser lembrado. Esquecem-se
do que aconteceu ontem, mas se lembram do que aconteceu há muito
tempo, como se fosse hoje.
Minha
alma tem estado a visitar a minha infância. Fantasias. O que são
fantasias? Wordsworth escreveu um lindo poema que termina assim:
As
nuvens que se juntam à volta do sol que se põe
ganham
suas cores solenes de olhos que têm atentamente observado
a
mortalidade humana.
As
cores estão lá, no poente. Mas quem só vê as cores não vê nada.
A beleza nostálgica do sol que se põe é uma dádiva dos olhos de
quem a vê como quem vê pela última vez. Os olhos dos poetas são
sempre olhos que se despedem. Pois não foi isso que percebeu Rilke
ao dizer: “Quem assim nos fascinou, para que tivéssemos esse olhar
de despedida em tudo o que fazemos?” As fantasias de infância são
as memórias transfiguradas pela saudade.
Eu
poderia colocar minhas fantasias de infância em álbuns diferentes,
como se fossem fotografias. Fantasias dos pequenos espaços (a
cabaninha, a casa no alto da árvore), as fantasias dos grande
espaços (os campos, os jardins), as fantasias da noite com seus
terrores...
Antigamente...
Menino, essa palavra me intrigava. Ouvia que os grandes em suas
visitas noturnas a usavam com frequência. E eu perguntava: “Quando
é antigamente?” Nunca me explicaram. Mas agora eu sei quando é
antigamente... Pois antigamente os grandes gostavam de fazer sofrer
as crianças. Cora Coralina, no seu poema “Antiguidades”, se
lembra dos seus sofrimentos:
Criança,
no meu tempo de criança,
não
valia mesmo nada.
A
gente grande da casa
usava
e abusava...
Riam,
caçoavam, maltratavam, humilhavam. Acho que eles pensavam que as
crianças não tinham o “lá dentro” onde mora o sofrimento. Os
grandes me faziam sofrer e riam do meu sofrimento. Mentiam para me
fazer sofrer. Eu devia ter uns quatro anos, na roça. Perto da casa
havia uma mata fechada. Por medo, eu nunca me aproximei dela. Diziam
que lá moravam onças. E os grandes me diziam que naquela mata
fechada morava um menino. E, para provarem, diziam: “Quer ver?” E
gritavam: “Ô menino!” O grito batia na mata e voltava como eco
bem fraco: “Ô menino...” Mas eu nada sabia sobre ecos. Sim, era
a voz fraca de um menino abandonado. Que pais o teriam deixado lá? E
por que ele ficava lá? E a imagem daquele menino não me deixava. De
noite, na minha cama, eu me lembrava dele sozinho no escuro. Como eu
desejava poder trazê-lo para a segurança da minha casa! Mas eu nada
podia fazer. E assim dormia, sofrendo o abandono do menino. Nunca vi
o dito menino, porque ele não existia. Mas a alma não sabe o que é
isso, o não existir. Aquilo que é sentido existe. A alma é um
lugar assombrado onde moram as mais estranhas criaturas que, sem
existirem, existem.
Depois
nos mudamos da roça para uma cidade. Primeiro, Lambari. Depois, Três
Corações. Em Três Corações morávamos numa minúscula casa que
tinha um minúsculo alpendre, uma minúscula sala de jantar, dois
minúsculos quartos, um minúsculo banheiro e uma minúscula
cozinha... Acho que foi construída para sete anões... Lá havia um
batalhão de cavalaria. De longe eu via os soldados com suas fardas,
cavalgando cavalos nervosos e brilhantes. De vez em quando, pelas
madrugadas, eu ouvia o barulho metálico das ferraduras batendo nas
pedras da rua onde estava a minha casa. Era escuro. Em casa todos
ressonavam, menos eu. Cuidadosamente eu me levantava e abria uma
fresta da janela para ver. Eram muitos, soldados e cavalos. Iam a
caminho de algum lugar, vagarosamente, carabinas ao lado dos arreios.
E eu imaginava que eles eram seres descomunais, fortíssimos,
centauros míticos. Seria um bom tema para um filme de Bergman.
Mudamo-nos
para a cidade, mas mantivemos o tempo da roça. Na roça os relógios
não eram necessários. Era o escuro da noite que dizia que era hora
de dormir. Assim, ia-se para a cama logo depois da janta. Não havia
razões para ficar acordado. A luz bruxuleante da lamparina de
querosene não era própria para a leitura. Havia também o cansaço
do dia que começara ao sol nascente. Além do que, todos sabiam que
a noite era um tempo sinistro, quando os seres da escuridão saíam
dos seus esconderijos para assustar aqueles que se atreviam a
desafiá-la. De todas as horas, a meia-noite era a hora mais temida.
Era a hora da magia. As coisas aconteciam sempre quando soava a
décima segunda badalada... Assim, jantávamos e íamos para a cama
depois de rezar: “Agora me deito para dormir. Guarda-me, ó Deus,
em teu amor. Se eu morrer sem acordar, recebe a minh’alma, ó
Senhor. Amém.” A morte trabalha durante a noite. Na cidade
seguíamos o mesmo tempo. Vezes sem conta ouvimos da cama o relógio
da igreja bater as oito horas... Oito horas, noite profunda. Na minha
imaginação, a cidade inteira deveria estar dormindo. E era então
que eu ouvia a voz rouca de um menino que andava pela rua, a mesma
rua por onde passavam os centauros armados: “Olha os pastéis, de
carne e de queijo...” Ah! Não era só na roça que havia meninos
abandonados. Na cidade também. Um, perdido na mata. O outro, perdido
na rua vazia. E eu o imaginava na rua escura anunciando pastéis para
pessoas que não havia. Ainda hoje ouço a sua voz de criança
solitária e abandonada.
Depois
nos mudamos para Varginha, cidade maior. A marcação do tempo mudou.
Não mais íamos para a cama depois da janta, porque o trem de ferro
passava bem defronte da nossa casa, guinchando trilhos, resfolegando
e vomitando milhares de fagulhas. Era o trem das oito. Muito antes
que ele aparecesse na curva, a gente sabia que ele estava chegando,
porque vinha apitando. Era um trem alegre porque nele vinha o meu pai
voltando de suas viagens. A noite passou a ser um escuro feliz.
Barulho, apito e fagulhas: tudo era alegria. Acresce o fato de que
agora já tínhamos um rádio Phillips para ouvir as novelas, a dupla
de violeiros Jararaca e Ratinho e o programa do nhô Totico. A noite
ficou mais amiga. Mas na cama, apagadas as luzes, feito o silêncio,
sozinho, as imagens de abandono retornavam. Não mais os dois
meninos. Eu mesmo. Lembro-me de que, numa dessas noites, eu chorava
baixinho. Chorava de angústia. Minha mãe ouviu o meu choro e veio
assentar-se ao meu lado para saber o que me fazia sofrer. Expus-lhe,
então, a minha aflição. “Mãe, quando eu crescer, como é que
vou fazer para arranjar uma mulher?” “Mãe, quando eu crescer
como é que vou fazer para ganhar a vida?”
Quem
tomar essas perguntas no seu literalismo se rirá delas. Não é
engraçado que problemas tão distantes façam uma criança chorar?
Mas o seu sentido não se encontra na letra. Ele se encontra no não
dito, na noite escura de onde surgiram, noite da minha alma, aquela
noite quando seria inútil chamar por pai ou por mãe, porque não
haveria ninguém para ouvir. Naquela noite eu chorava pela minha
solidão, pelo abandono que me esperava, quando eu seria como o
menino da mata ou o menino na rua vazia.
O
menino abandonado não me abandonou. Entrou dentro de mim e mora
comigo. Me faz sofrer. Me dá ternura. Sempre que vejo uma criança
abandonada, eu sofro. Quereria poder protegê-la, cuidar dela. Eu me
enterneço porque a criança abandonada que mora em mim está
sofrendo. Afinal, todos somos crianças abandonadas. Nos momentos de
solidão noturna, de insônia, tomamos consciência de que estamos
destinados ao abandono, àquele tempo quando será inútil chamar
“meu pai” ou “minha mãe”. Os negros norte-americanos
conheciam esse sentimento. E com ele compuseram um spiritual
em ritmo de canção de ninar que diz assim:
Por
vezes eu me sinto como uma criança sem mãe,
por
vezes eu me sinto como uma criança sem mãe,
longe,
muito longe de casa...
É
assim que me sinto, às vezes. Tenho, então, vontade de chorar…
Rubem
Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente
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