Quando
o despertador toca, e os sonhos fogem, aí começa: banho, barba,
café, beijo e rua!
A
vida tem essa mania de passar as obrigações na cara dele.
— Bom
trabalho, pai!
— Vê
se não se atrasa pro jantar.
— E
não esquece de deixar aqueles cinquenta que eu pedi ontem.
Quando
era garoto, ele queria ser cantor de rock.
Hoje
trabalha muito, sai pouco, agrada médio, raramente chora, adora
música, de vez em quando arrisca um samba. Desistiu de ficar rico.
Desistiu de ficar jovem. Desistiu de tocar guitarra. Desistiu de
falar inglês fluentemente. Desistiu de entender as mulheres.
Desistiu. Infelizmente.
Faz
contas e mais contas.
Vê
TV pra se distrair um pouco.
Bebe
quando pode. Quando bebe, geralmente ele ama.
Parou
de fumar várias vezes. Parou de dançar. Parou de pensar. Parou de
insistir. Parou.
Tem
colesterol alto. Fica meio preocupado. Depois passa.
Joga
paciência no computador apenas quando está - impaciente.
Além
do colesterol, ainda tem a tendinite.
Fora
a vista cansada.
Lia
muito antigamente. Leu até filosofia.
Nunca
mais foi ao cinema. Sexta que vem vai sem falta. Sábado tem jogo.
Domingo tem pizza. Segunda tem mais. Terça tem mais ainda.
Dólar
sobe. Salário fica. Restaurante tá pela hora da morte. Praia que é
bom tá poluída. Problema tem muito. Candidato não falta. Solução
é que tá bastante difícil. Assim não há quem aguente. Depois
passa. Já tentou promessa. Já tentou incenso. Já tentou calmante.
Já
tentou contar até dez. Um dia chegou a mil e duzentos. Já tentou de
tudo, na verdade. Continua tentando.
A
mulher pede atenção. O filho ficou em recuperação. As filhas
querem ora isso, ora aquilo, sabe como é que é menina. A mais velha
arranjou um namorado. A mais nova é a cara da mãe. Viu só como a
mãe dela já foi linda?
Adorava
cartas, principalmente as que vinham em envelope bonito e com vários
selos colados, mas nunca mais recebeu nenhuma.
É
praticamente fiel.
Pretende
conhecer Veneza.
De
vez em quando, ele olha pra trás.
O
garoto que queria ser cantor de rock até que não está tão longe
assim, lembra?
Luz
negra, calça de nesga, rum com coca, violão, passeata, LP, parece
que foi outro dia.
Mas
hoje não dá pra ter saudade. Cadê tempo? Olha a hora! Olha pra
frente.
Amanhã
tem reunião importante. Tomara que dê tudo certo. Dizem que o
negócio tá feio. Imagina como é que vai ser quando as crianças
crescerem? Se ao menos desse pra juntar algum pro futuro. Como é que
se diminui ainda mais esse orçamento? Só refazendo as contas. Mas a
mulher reclama que nunca mais saiu pra jantar. Tudo bem. Vá, lá,
que seja. Promete para si mesmo que não vai beber muito hoje. Só
uma. Ou duas. No máximo, três. (Às quatro da manhã estará
irremediavelmente arrependido.) Depois passa.
Todo
dia é isso: matar um leão, encarar chateação, cumprir obrigação,
garantir o seu quinhão e ainda manter o sorriso.
Uma
vez por ano tem dia dos pais. Ele guarda com carinho o peso de papel
que o filho pintou quando ainda estava no jardim.
—
Presente pra mim? Muito obrigado.
O
garoto que queria ser cantor de rock hoje é pai de família e às
vezes fica especialmente emocionado.
Depois
passa.
Amanhã
é outro dia.
Adriana
Falcão, in O doido da garrafa
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