quinta-feira, 9 de março de 2017

Um artista

Trabalhávamos no mesmo andar, em salas diferentes, para o mesmo patrão impessoal, e apenas nos víamos de passagem, um dia ou outro. O cumprimento de cabeça resumia nossas relações. Pedi-lhe uma vez que me decifrasse a letra alemã de uma canção de Caymmi. Seu português era estropiado, quanto à construção e à prosódia, apesar do longo tempo de Brasil. Exprimia-se melhor em formas e linhas. Escultor laureado, desenhista de traço exato, vivia à margem dos grupos que se chocam ou se exibem na passarela. Era considerado “moderno”, até o dia em que o Salão dito moderno lhe impugnou os trabalhos. Era principalmente solitário, fechado em si, canhestro, desengonçado em sua pobreza, vagamente áspero.
Que é que eu pensava dele, depois de tantos anos de cumprimentos no elevador, e de duas ou três frases sem conteúdo afetivo? Nada. Um nome estrangeiro, a presença quase estrangeira em sua frialdade.
E chegando ao trabalho me dizem que ele morreu na véspera. Sabia-o doente, imaginei a morte comum e nivelada, na cama, entre injeções. Não fora assim. Era domingo sem sol, desses que o jornal anuncia com a informação: “Não haverá praia para o carioca”. Para um europeu haveria sempre praia, e ele, metido no short, lá se foi ao mar de Ipanema, onde eu o figuraria calado, mirando o volume dos corpos, a composição plástica das nuvens, ou apenas e animalmente fruindo a água e o vento alheio ao resto do mundo, este que se danasse.
Eis que alguém está se afogando naquele mar difícil, e ele se atira para salvar o desconhecido. Bom nadador, logo o consegue. Mas já de volta à areia, enquanto o outro se recupera, o esforço físico o abate, e ele falece a caminho do Posto de Socorro do Lido, na ambulância. Tinha 62 anos, o coração não resistiu à prova. (O médico lhe recomendara tanto que não se gastasse, nem sequer jogasse peteca.)
Passa então a ser um cadáver de indigente, com destino certo para a Faculdade de Medicina, pois não tem parente algum no Rio. É aí que a repartição, alertada, toma conta dele, torna-se sua família, luta com as autoridades para vestir o corpo e sepultá-lo. Seu pequeno apartamento fora interditado pela polícia, já se passaram 24 horas, e o delegado não chega, para autorizar a entrada no domicílio do morto. Afinal o comissário se compadece, abre-se a porta, o melhor terno vai substituir o short, e, depois da autópsia, no triste, vulgar e sinistro Instituto Anatômico, sob flores, o cadáver parece transbordar um pouco do caixão, como se o gesto final de sacrifício lhe aumentasse a dimensão humana.
Quatro mulheres, de idades diferentes, cercam-no em silêncio. É outra pequena família que se forma, e que irá dissolver-se daí a pouco. Não há como as mulheres para virem, não se sabe de onde, pousarem um instante junto a alguém imóvel, criarem em torno dele uma atmosfera de carinho, que a simples solidariedade dos homens não saberia compor. A mais jovem alisa as mãos cruzadas do escultor, beija-as suavemente, pede que não fechem tão depressa o caixão. O pequeno grupo se movimenta, há um cadeado que falta e que é procurado e achado entre as flores. Quase ninguém soube, os jornais não noticiaram, o fluxo geral não mudou o seu ritmo, enquanto um homem dava sua vida para salvar a de um desconhecido, e esse homem era um artista, espécie de gente muito afeita ao egoísmo, na opinião dos entendidos.
Carlos Drummond de Andrade, in A bolsa & a vida

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