sexta-feira, 24 de março de 2017

O saco de viagem


Coloquei uma ou duas camisas no meu velho saco de viagem, prendi-o embaixo do braço e parti rumo ao cabo Horn e ao Pacífico. Deixando a boa cidade da velha Manhatto, logo cheguei a New Bedford. Foi em dezembro, numa noite de sábado. Fiquei muito decepcionado ao saber que o pequeno paquete para Nantucket já havia partido e que não encontraria outro meio de transporte até a segunda-feira seguinte.
Visto que a maioria dos jovens candidatos às dores e aos castigos da pesca de baleias sempre se detém em New Bedford, para daí embarcar em suas viagens, devo relatar que eu, por mim, não tive essa intenção. Estava decidido a navegar somente numa embarcação de Nantucket, porque havia algo de belo e impetuoso em tudo que se relacionava àquela famosa ilha, que me agradava sobremaneira. Além disso, apesar de New Bedford estar cada vez mais monopolizando o comércio baleeiro, deixando a velha e pobre Nantucket para trás, a verdade é que Nantucket foi seu modelo grandioso – a Tiro dessa Cartago –; o lugar onde encalhou a primeira baleia norte-americana morta. De onde, a não ser de Nantucket, sairiam de canoa os baleeiros nativos, os peles-vermelhas, para pela primeira vez caçar o Leviatã? De onde, a não ser de Nantucket também, zarparia a primeira chalupa aventureira, em parte carregada com paralelepípedos importados – assim reza a história –, para serem atirados nas baleias, com o intuito de descobrir se estas estavam tão próximas que se poderia arriscar um arpão do gurupés?
Ora, como eu tinha ainda que passar uma noite, um dia e mais outra noite em New Bedford antes de embarcar para o meu porto de destino, comecei a me preocupar com um lugar para comer e dormir nesse meio tempo. Era uma noite duvidosa, não, uma noite muito escura e lúgubre, de frio cortante e melancólica. Não conhecia ninguém naquele lugar. Depois de ansiosa procura, encontrei apenas umas moedas de prata no meu bolso, – Bem, aonde quer que você vá, Ishmael, disse a mim mesmo, parado no meio de uma rua triste, com o saco de viagem no ombro, comparando a escuridão do norte com as trevas do sul, – onde quer que, em seu juízo, você decida se alojar por esta noite, meu caro Ishmael, não se esqueça de perguntar pelo preço, e não seja muito exigente.
Com passos hesitantes, andei pelas ruas, passei diante da placa Arpões Cruzados – estalagem que me pareceu cara e agitada demais. Mais adiante, da fulgurante janela vermelha da estalagem Peixe-Espada saíam uns feixes de luz tão ardentes, que pareciam ter derretido a neve e o gelo acumulados diante da casa, pois em todas as outras partes havia uma camada espessa de gelo de dez polegadas que cobria a calçada numa dura pavimentação de asfalto – cujas saliências eram dolorosas para mim, porque a sola de minha bota, de tantos serviços duros e impiedosos, estava num estado lastimável. Cara e agitada demais, pensei de novo, parando um instante para observar a luz ofuscante na rua e ouvir o tilintar dos copos de dentro. Continue, Ishmael, disse afinal; não ouviu? Saia da frente dessa porta, suas botas remendadas estão atrapalhando o caminho. E assim fui embora. Por instinto, segui as ruas que conduziam ao mar, pois, sem dúvida alguma, lá estariam as estalagens mais baratas e talvez mais acolhedoras.
Que ruas sinistras! Dos dois lados, quadras de escuridão, não de casas, e aqui e ali uma vela, como a que se movesse numa sepultura. Àquela hora da noite do último dia da semana, aquele quarteirão da cidade parecia tudo, menos deserto. Dentro em pouco vi uma luz enfumaçada, vinda de um prédio baixo e largo, cuja porta se encontrava hospitaleiramente aberta. Tinha um aspecto descuidado, como se fosse para o uso público; assim, ao entrar, a primeira coisa que fiz foi tropeçar numa caixa de cinzas na varanda. Ah!, pensei, Ah!, enquanto as partículas voadoras quase me sufocavam, seriam estas as cinzas daquela cidade destruída, Gomorra? Mas “Arpões Cruzados” e “Peixe-Espada”? – Esta deve ser, então, a placa de “A Armadilha”. Mas logo me recompus e, ouvindo uma voz alta vinda de dentro, empurrei e abri uma segunda porta interna.
Parecia o grande Parlamento Negro reunido em Tofet. Cem rostos negros viraram-se para olhar; mais adiante, um Anjo Negro do Juízo Final socava um livro no púlpito. Era uma igreja de negros; e o texto do pregador versava sobre a escuridão das trevas, e sobre os choros e os lamentos e os dentes que ali rangiam. Ah! Ishmael, murmurei ao sair, que péssimo espetáculo sob a placa de “A Armadilha”!
Prosseguindo, cheguei afinal a uma luz externa, perto do cais, e ouvi um rangido sem esperança no ar; olhando para cima, vi uma tabuleta que balançava em cima da porta com uma pintura branca, que representava vagamente um jato comprido e reto de espuma enevoada, este subscrito com as seguintes palavras – Estalagem do Jato: – Peter Coffin [caixão].
Caixão? – Baleia? – Essa associação é tão agourenta, pensei. Mas dizem que é um nome comum em Nantucket, e acredito que este Peter aqui tenha vindo de lá. Como a luz era fraca, e o lugar, pela hora, parecia bastante tranqüilo, e a própria casinha de madeira estragada parecia ter sido carregada para lá das ruínas de um bairro incendiado, e como a placa oscilante rangia com uma certa pobreza, achei que aqui era o lugar certo para uma acomodação barata e o melhor chá de ervilhas.
Era um lugar esquisito – uma velha casa, terminada em empena, com um lado paralisado, por assim dizer, tristemente curvada para a frente. Ficava numa esquina aguda e desolada, onde aquele tempestuoso vento Euroaquitão fazia um uivo pior do que em torno da embarcação sacolejada do pobre Paulo. Não obstante, o Euroaquitão é um zéfiro muito agradável para os que estão dentro de casa, com os pés perto da lareira, preparando-se para deitar. “Ao julgar aquele vento tempestuoso chamado Euroaquitão”, diz um velho escritor – de cujas obras eu tenho o único exemplar que sobreviveu –, “faz uma diferença enorme se olhares de uma janela de vidro, com o gelo do lado de fora, ou se o observares da janela sem caixilho, com o gelo de ambos os lados e da qual a Morte veloz é o único vidraceiro.” Quando essa passagem me ocorreu, pensei – falaste bem, Antigo. Sim, estes olhos são as janelas e este meu corpo é a casa. Que pena que não fecharam as fendas e as rachaduras com um pouco de linho aqui e ali. Mas agora é tarde demais para fazer qualquer melhoria. O universo está terminado; a última pedra foi colocada, e os restos levados embora há um milhão de anos. Pobre Lázaro, batendo os dentes contra o meio-fio que tem como travesseiro, sacudindo os farrapos com seus tremores, você poderia tampar o ouvido com trapos e colocar uma espiga de milho na boca e, ainda assim, não conseguiria proteger-se do tempestuoso Euroaquitão. Euroaquitão!, diz o velho rico, em seu roupão de seda vermelho (depois teve um mais vermelho) – Ora! Que bela noite gelada; como Órion cintila; que aurora boreal! Que falem de seus climas de verões orientais com estufas sempiternas; quero ter o privilégio de fazer meu próprio verão com meu próprio carvão.
Mas o que pensa Lázaro? Pode aquecer as suas mãos azuis com a magnífica aurora boreal? Lázaro não teria preferido estar em Sumatra em vez de aqui? Não teria preferido se esticar na linha do Equador? Sim, deuses! Descer ao próprio inferno para se proteger desse gelo?
Ora, é mais maravilhoso que Lázaro se tenha atracado na calçada diante da porta de Dives do que se uma montanha de gelo tivesse sido ancorada em uma das Molucas. O próprio Dives vive como um Czar num palácio de gelo feito de lamentos congelados e, como presidente de uma sociedade de moderação, apenas bebe as lágrimas tépidas dos órfãos.
Mas basta de pranto; nós vamos a uma pesca baleeira e ainda há muito pela frente. Vamos tirar o gelo de nossos pés gelados e ver que tipo de lugar é essa Estalagem do Jato.
Herman Melville, in Moby Dick

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