sexta-feira, 24 de março de 2017

Eusson Birea

Jorge tem dificuldade em adormecer e por isso inventa jogos e cenários que lhe cansam as ideias até poder adormecer pela cabeça. Jorge imagina-se um conquistador, um rebelde, um general, por vezes um bandido. As histórias da avó Fanny servem-lhe as fantasias e ele desfia-as pela noite dentro, perdendo-se nas terras, adivinhando-as nos nomes raros que elas têm.
Homens rudes e silenciosos com exércitos para comandar, batalhas imensas e cruéis, montanhas e desertos entre missões e morrer. São assim as histórias tão complexas como ingênuas que Jorge conta a si próprio para adormecer. E que terminam invariavelmente com sacrifícios pela pátria, pelos seus soldados ou por qualquer ideal vago e fundamental.
Jorge vive glórias imensas noite após noite antes que o sono chegue. Jorge herói, Jorge mártir, Jorge santo guerreiro. O tão criança que é impede-o de se imaginar a si exactamente, com o seu corpo pequeno e frágil, um corpo tão incapaz de mudar homens de sítio. Assim desenha-se nos avôs antigos que estão espalhados pelas paredes da casa, com todos os bigodes e fardas que são garante de força e respeitabilidade. Um homem de bigode e chapéu pode fazer qualquer coisa na mente de Jorge, até ser seu avô e fundar pátrias no mato. O Jorge menino sonha muitas vezes que é o seu avô, ou bisavô, ou outros ainda antes desses. Há nessas horas uma ideia que lhe vem à cabeça e o deixa confuso, a ideia de todos esses homens sonharem também que são Jorge depois da guerra e do mal, homens de barbas e bigodes com vontades de brincar e de ser outra vez pequenos.
Os sonhos de Jorge são sonhos sem tempo, como os de todas as crianças. São sonhos em que todos estão presentes ao mesmo tempo em lugares distantes do mundo, na selva, no outro lado do mar e nos retratos das paredes. Se deus está em todo o lado, as crianças estão em todo o tempo.
As guerras de Jorge começam todas as noites do princípio, há homens maus de um lado e os seus homens bons do outro. Sempre os mesmos maus e sempre os mesmos bons, todos prontos a usar os disfarces de uma comédia contínua. O mundo de sonhos de Jorge é enorme, maior ainda do que o outro. Nele estão sempre todas as batalhas, todos os homens e todas as histórias da avó Fanny.
O pequeno Jorge sonha ser grande pela espada porque grandes assim são todos os heróis. Matar é coisa que se faz para ser ilustre e ter bigode, é destino a dar aos maus com a vontade justa de deus a guiar os golpes. De um lado o bem e do outro diabos, é assim que Jorge adormece.
Nuno Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros

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