Jorge
tem dificuldade em adormecer e por isso inventa jogos e cenários que
lhe cansam as ideias até poder adormecer pela cabeça. Jorge
imagina-se um conquistador, um rebelde, um general, por vezes um
bandido. As histórias da avó Fanny servem-lhe as fantasias e ele
desfia-as pela noite dentro, perdendo-se nas terras, adivinhando-as
nos nomes raros que elas têm.
Homens
rudes e silenciosos com exércitos para comandar, batalhas imensas e
cruéis, montanhas e desertos entre missões e morrer. São assim as
histórias tão complexas como ingênuas que Jorge conta a si próprio
para adormecer. E que terminam invariavelmente com sacrifícios pela
pátria, pelos seus soldados ou por qualquer ideal vago e
fundamental.
Jorge
vive glórias imensas noite após noite antes que o sono chegue.
Jorge herói, Jorge mártir, Jorge santo guerreiro. O tão criança
que é impede-o de se imaginar a si exactamente, com o seu corpo
pequeno e frágil, um corpo tão incapaz de mudar homens de sítio.
Assim desenha-se nos avôs antigos que estão espalhados pelas
paredes da casa, com todos os bigodes e fardas que são garante de
força e respeitabilidade. Um homem de bigode e chapéu pode fazer
qualquer coisa na mente de Jorge, até ser seu avô e fundar pátrias
no mato. O Jorge menino sonha muitas vezes que é o seu avô, ou
bisavô, ou outros ainda antes desses. Há nessas horas uma ideia que
lhe vem à cabeça e o deixa confuso, a ideia de todos esses homens
sonharem também que são Jorge depois da guerra e do mal, homens de
barbas e bigodes com vontades de brincar e de ser outra vez pequenos.
Os
sonhos de Jorge são sonhos sem tempo, como os de todas as crianças.
São sonhos em que todos estão presentes ao mesmo tempo em lugares
distantes do mundo, na selva, no outro lado do mar e nos retratos das
paredes. Se deus está em todo o lado, as crianças estão em todo o
tempo.
As
guerras de Jorge começam todas as noites do princípio, há homens
maus de um lado e os seus homens bons do outro. Sempre os mesmos maus
e sempre os mesmos bons, todos prontos a usar os disfarces de uma
comédia contínua. O mundo de sonhos de Jorge é enorme, maior ainda
do que o outro. Nele estão sempre todas as batalhas, todos os homens
e todas as histórias da avó Fanny.
O
pequeno Jorge sonha ser grande pela espada porque grandes assim são
todos os heróis. Matar é coisa que se faz para ser ilustre e ter
bigode, é destino a dar aos maus com a vontade justa de deus a guiar
os golpes. De um lado o bem e do outro diabos, é assim que Jorge
adormece.
Nuno
Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros
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