quarta-feira, 22 de março de 2017

O País dos Cegos (trecho inicial)

A mais de trezentas milhas do Chimborazo, a cem das neves do Cotopaxi, nas brenhas mais selvagens dos Andes do Equador, onde as rochas desgastadas pela geada e pelo sol se erguem, em vastos pináculos e falésias, por cima da neve, existiu um dia um vale misterioso entre as montanhas chamado o País dos Cegos. Era uma terra lendária, e até pouco tempo atrás muita gente duvidava de que fosse mais do que uma simples lenda. Rezava a história que muitos anos atrás o vale estava aberto ao mundo exterior, de tal maneira que homens capazes de enfrentar as contínuas avalanches podiam acabar cruzando aqueles desfiladeiros ameaçadores e atravessar uma passagem gélida até chegar àqueles prados tranquilos; e não há dúvida de que por aquela passagem homens vieram e ali se instalaram, uma ou outra família de mestiços peruanos, fugindo da libidinagem e da tirania de algum maligno governante espanhol. Veio então a estupenda erupção do Mindobamba, quando em Quito a noite durou dezessete dias, as águas ferveram em Yaguachi e se encheram de peixes mortos boiando até Guayaquil; por toda parte ao longo da costa do Pacífico houve deslizamentos de terra, degelos bruscos, inundações repentinas; e um lado inteiro da crista do velho Arauca rolou abaixo por entre estrondos, e isolou para sempre o País dos Cegos, ou pelo menos foi o que pareceu, deixando-o fora do alcance da curiosidade humana.
Mas, prosseguia a história, um desses antigos habitantes encontrava-se por acaso do lado de cá do desfiladeiro quando o mundo sofreu esses abalos; com isto foi obrigado a esquecer a esposa, o filho e todos os amigos e as posses que afirmava ter do outro lado, e começar vida nova longe daquelas altitudes.
Ele tinha um motivo especial para justificar sua volta daquele reduto longínquo, para onde fora carregado um dia amarrado ao dorso de uma lhama, junto a um fardo de utensílios, quando era criança. O vale, dizia ele, guardava em si tudo que o coração humano podia desejar: água limpa, pastos, um clima estável, barrancos de um solo escuro e fértil com numerosos arbustos que davam excelentes frutas, e, num dos lados, grandes florestas de pinheiros que protegiam a encosta dos deslizamentos de terra. Bem no alto, um semicírculo de picos cobertos de neve, de uma rocha cinza-esverdeada, contemplava aquele luminoso jardim; mas as correntes de água da geleira desciam na direção das encostas mais afastadas, e era muito raro que alguma avalanche chegasse àquele ponto. No vale em si eram raras tanto a chuva quanto a neve; mas as fontes naturais proporcionavam pastos verdes e abundantes que um sistema de irrigação pacientemente construído espalhava em redor. A água excedente era recolhida num pequeno lago na parte inferior daquele anfiteatro natural, e dali se precipitava com um rugido atroador numa caverna profunda. Os colonos, disse o homem, viviam muito bem ali. Seus animais eram bem-cuidados e se multiplicavam. Havia apenas uma coisa a prejudicar sua felicidade, e no entanto era algo que a comprometia grandemente; alguma propriedade sinistra daquele ar puro e revigorante. Uma doença estranha se abatera sobre eles, fazendo com que todas as crianças ali nascidas — sem falar em várias outras mais velhas — ficassem cegas, de tal modo que o vale parecia destinado a ser um dia habitado apenas por cegos.
E, disse ele, fora em busca de alguma cura ou antídoto contra essa enfermidade que ele, com infinitos esforços, perigos e dificuldade, tinha conseguido transpor o desfiladeiro. Naquele tempo, em casos assim os homens não raciocinavam em termos de gérmens e de infecções, mas em termos de pecados; e pareceu-lhe que a razão daquele flagelo era o fato de que os primeiros imigrantes, não tendo entre si um sacerdote, não tinham se dado o trabalho de erguer ali uma capela, logo que chegaram ao vale. Ele queria que uma capela — um santuário barato, prático, bem-cuidado — fosse erguida no vale; queria que houvesse ali relíquias e testemunhos de uma fé poderosa: objetos sagrados, medalhas misteriosas, orações. Em sua bolsa tinha trazido uma barra de prata cuja procedência recusou-se a revelar; afirmou, com a insistência de quem não está acostumado a mentir, que não havia prata alguma no vale. Segundo ele, os colonos tinham reunido todo seu dinheiro e ornamentos, que não tinham serventia lá no alto, para que ele pudesse pagar por algum tipo de socorro sobrenatural contra a doença que os afligia. Posso imaginar aquele jovem montanhês, queimado de sol, macilento, ansioso, agarrando com força a aba do chapéu, um homem totalmente desacostumado ao modo de ser do mundo aqui embaixo, contando esta história a algum padre atento e perspicaz, antes da grande erupção; posso imaginá-lo por fim tentando regressar, cheio de remédios piedosos e infalíveis contra aquela enfermidade, e o terrível desalento com que deve ter contemplado aquela vastidão desmoronada, e ainda sujeita a abalos, no local onde antes se abria um desfiladeiro. Mas o resto da história de seus infortúnios não chegou até mim; sei apenas que ele morreu nas minas, onde cumpria algum tipo de pena. Não sei que crime terá cometido.
Mas a ideia de um vale habitado por um povo cego tinha o tipo de apelo à imaginação de que uma lenda necessita para se propagar. Estimula a fantasia. Cria seus próprios detalhes.
E em tempos recentes essa história recebeu uma confirmação de maneira notável. Agora, conhecemos a história do País dos Cegos desde o seu início até o seu final trágico e recente.
H. G. Wells, in O país dos cegos e outras histórias

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