domingo, 26 de março de 2017

Não pode dar certo

Estavam juntos havia alguns anos, eram bastante felizes e ela gostava muito dele. Mas o problema não era só esse.
Ela gostava dele demais. Aquilo não era mais gostar, era pior, era amar mesmo. Sabe amor, amor, que nem em música, em história de romance ou então em filme, amor que não acaba mais, amor de verdade, sabe lá o que é isso?
Pois imagine.
Ela amava aquele cara com todas as qualidades e todos os defeitos que ele tinha, pior ainda, amava os defeitos dele, inclusive aquela mania de exagerar as histórias que contava (ela sempre usava o verbo exagerar, em vez de mentir, quando ele era o sujeito da frase).
Ela amava o jornal inteiro que ele lia, o cachorro dele que latia, a toalha no chão do banheiro, o sapato no meio da sala, o sal de fruta, a pressa, o amigo chato, a noite besta, o dia a dia, mesmo quando ele estava mal-humorado, deprimido, insuportável, impossível, mesmo quando ele não estava, nem telefonava, mesmo quando ele se atrasava, não vinha, faltava, não ouvia, mesmo assim ela amava, fazer o quê?, o amor é assim mesmo, dizem.
Logo começaram a estranhar um pouco o fato.
Diziam que ela era insensata de amar daquele jeito, com aquela intensidade, sem medo nem cautela, sem fazer economia, diziam que ela era burra, que era cega, que era boba, diziam que ela era doida.
Doidinha.
Isso não pode dar certo.
Que ingenuidade, meu Deus.
Ainda vai quebrar a cara um dia.
Deixa ela.
A vida ensina.
As coisas mudam.
O tempo passa.
Mas o tempo ia passando e ela continuava a amar o mesmo amor, igualzinho. Quando as coisas iam mudando, ela amava mais ainda. Todos os casais que existiam já tinham se separado, e ela lá com ele. Todos os separados (inclusive os mais descrentes) já tinham encontrado outros amores, e ela lá na mesma.
Fosse em casa, na rua, no trabalho, nas férias, em Verona, em Fortaleza, em Niterói, em Ibiza, aqui mesmo, em qualquer lugar que fosse, em toda e qualquer circunstância, mesmo nas mais adversas, chovesse ou fizesse sol, ela amava incondicionalmente. Aquilo até irritava, que amor é esse, gente? Quem já viu uma coisa dessas? Ela não era normal.
Estava errado. Não podia.
Foi então que resolveram estudar o caso com detalhes, e ela virou fonte de pesquisa.
Fizeram exames psicológicos, psicotécnicos, semióticos, ergométricos, enzimáticos, neurogênicos, hemoculturas, eletrocardiogramas, gráficos, cálculos, análises, conjecturas, cronometraram tudo e deram o diagnóstico: aquilo não tinha cura.
Tente se pôr no lugar dela.
Quem não se preocuparia em saber que é pessoa desenganada?
Ela ficou meio confusa.
Será que não tinha jeito?
E decidiu tentar de tudo. Acupuntura, homeopatia, praia, ioga, teatro, reza, lógica, tequila, aula de dança, namorado, voo livre, nada disso adiantava, o problema era gravíssimo.
Terminou acontecendo: ela pôs a culpa nele, é claro.
Ele não era normal. Era bom demais pra ela. Muito direito, trabalhador, sincero (só um pouquinho exagerado), mas era moreno, por outro lado, inteligente, bonito. Pra completar, fazia tudo o que ela gostava, qualquer coisa, ainda por cima. Quem já viu uma coisa dessas? Não podia. Estava errado.
Tiveram uma conversa muito séria madrugada adentro com direito a choro, acusação e grito. Quando o dia nasceu, encontrou os dois mortos de cansaço. Era inútil, ao que parece, aquilo não tinha saída.
Decidiram ficar juntos assim mesmo, apesar disso. Qual é o casal, afinal, que não tem os seus problemas, não é mesmo?
Adriana Falcão, in O doido da garrafa

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