Estavam juntos havia alguns anos, eram
bastante felizes e ela gostava muito dele. Mas o problema não era só
esse.
Ela gostava dele demais. Aquilo não era
mais gostar, era pior, era amar mesmo. Sabe amor, amor, que nem em
música, em história de romance ou então em filme, amor que não
acaba mais, amor de verdade, sabe lá o que é isso?
Pois imagine.
Ela amava aquele cara com todas as
qualidades e todos os defeitos que ele tinha, pior ainda, amava os
defeitos dele, inclusive aquela mania de exagerar as histórias que
contava (ela sempre usava o verbo exagerar, em vez de mentir, quando
ele era o sujeito da frase).
Ela amava o jornal inteiro que ele lia, o
cachorro dele que latia, a toalha no chão do banheiro, o sapato no
meio da sala, o sal de fruta, a pressa, o amigo chato, a noite besta,
o dia a dia, mesmo quando ele estava mal-humorado, deprimido,
insuportável, impossível, mesmo quando ele não estava, nem
telefonava, mesmo quando ele se atrasava, não vinha, faltava, não
ouvia, mesmo assim ela amava, fazer o quê?, o amor é assim mesmo,
dizem.
Logo começaram a estranhar um pouco o
fato.
Diziam que ela era insensata de amar
daquele jeito, com aquela intensidade, sem medo nem cautela, sem
fazer economia, diziam que ela era burra, que era cega, que era boba,
diziam que ela era doida.
Doidinha.
Isso não pode dar certo.
Que ingenuidade, meu Deus.
Ainda vai quebrar a cara um dia.
Deixa ela.
A vida ensina.
As coisas mudam.
O tempo passa.
Mas o tempo ia passando e ela continuava
a amar o mesmo amor, igualzinho. Quando as coisas iam mudando, ela
amava mais ainda. Todos os casais que existiam já tinham se
separado, e ela lá com ele. Todos os separados (inclusive os mais
descrentes) já tinham encontrado outros amores, e ela lá na mesma.
Fosse em casa, na rua, no trabalho, nas
férias, em Verona, em Fortaleza, em Niterói, em Ibiza, aqui mesmo,
em qualquer lugar que fosse, em toda e qualquer circunstância, mesmo
nas mais adversas, chovesse ou fizesse sol, ela amava
incondicionalmente. Aquilo até irritava, que amor é esse, gente?
Quem já viu uma coisa dessas? Ela não era normal.
Estava errado. Não podia.
Foi então que resolveram estudar o caso
com detalhes, e ela virou fonte de pesquisa.
Fizeram exames psicológicos,
psicotécnicos, semióticos, ergométricos, enzimáticos,
neurogênicos, hemoculturas, eletrocardiogramas, gráficos, cálculos,
análises, conjecturas, cronometraram tudo e deram o diagnóstico:
aquilo não tinha cura.
Tente se pôr no lugar dela.
Quem não se preocuparia em saber que é
pessoa desenganada?
Ela ficou meio confusa.
Será que não tinha jeito?
E decidiu tentar de tudo. Acupuntura,
homeopatia, praia, ioga, teatro, reza, lógica, tequila, aula de
dança, namorado, voo livre, nada disso adiantava, o problema era
gravíssimo.
Terminou acontecendo: ela pôs a culpa
nele, é claro.
Ele não era normal. Era bom demais pra
ela. Muito direito, trabalhador, sincero (só um pouquinho
exagerado), mas era moreno, por outro lado, inteligente, bonito. Pra
completar, fazia tudo o que ela gostava, qualquer coisa, ainda por
cima. Quem já viu uma coisa dessas? Não podia. Estava errado.
Tiveram uma conversa muito séria
madrugada adentro com direito a choro, acusação e grito. Quando o
dia nasceu, encontrou os dois mortos de cansaço. Era inútil, ao que
parece, aquilo não tinha saída.
Decidiram ficar juntos assim mesmo,
apesar disso. Qual é o casal, afinal, que não tem os seus
problemas, não é mesmo?
Adriana Falcão, in O doido da
garrafa
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