domingo, 26 de março de 2017

Mais que uma quimera


Os velhos manuscritos dos monges, iluminados por delicadas miniaturas, e os livros dos poetas alemães de há duzentos ou cem anos, esquecidos pelo eu próprio povo, livros manchados e carcomidos pela umidade, os impressos e manuscritos dos velhos compositores, as partituras vigorosas e amarelecidas, com seus imobilizados tons de sonho — quem escutava suas vozes espirituais, irônicas e nostálgicas? Quem tinha o coração repleto de seu encanto num mundo a elas estranho? Quem pensava até hoje naquele cipreste pequenino e tenaz que se erguia no alto da montanha de Gubbio que, embora partido e arrancado por uma avalancha de pedras, continuava entretanto a viver e havia levantado com suas últimas forças uma nova copa bisonha? Quem fizera justiça à diligente dona de casa do primeiro andar e ao seu luzido pinheirinho? Quem lia à noite, sobre o Reno, a inscrição que as nuvens formavam na névoa? O Lobo da Estepe. E quem buscava entre os escombros da vida o seu significado esvoaçante, quem sofria com a aparente insensatez, quem vivia com o que parecia louco, quem esperava em segredo no último e confuso abismo a revelação de Deus e sua vinda? Afastei o copo de vinho quando a dona da casa veio enchê-lo de novo, e levantei-me. Não necessitava mais vinho. A trilha dourada voltara a refulgir, eu havia recordado o eterno: Mozart, as estrelas. Podia voltar a respirar por uma hora, podia existir, não necessitava sofrer tormentos, nem temores, nem vergonhas. Quando saí à rua, que se tornara silenciosa, as gotas da chuva, açoitadas pelo vento frio, davam de encontro às lâmpadas em cintilações cristalinas. Aonde ir? Se naquele momento eu pudesse concretizar por encantamento um só desejo, gostaria de ver-me num gracioso salão estilo Luís XVI, onde um par de bons músicos estaria tocando para mim duas ou três peças de Handel e de Mozart. Tal era a minha disposição naquele instante e teria degustado a música como os deuses saboreiam o néctar. Oh! se tivesse agora um amigo, um amigo que vivesse nalguma água-furtada, sonhando à luz de uma vela, com o violino ao alcance da mão! Como o iria surpreender em sua paz noturna, após subir silencioso pela escada em espiral, e lá haveríamos de passar algumas horas espirituais a conversar sobre música! Em dias que já se foram, saboreei com frequência esse tipo de felicidade, mas também ela se distanciara de mim com o passar do tempo; entre o então e o agora muitos anos emurchecidos se interpunham. Iniciando lentamente o regresso a casa, ergui a gola do casaco e batia com a bengala contra o úmido pavimento. Por mais que me demorasse na rua, acabava sempre por regressar ao meu refúgio, ao meu falso lar, que eu não amava e do qual, no entanto, não podia prescindir, pois já se fora para mim o tempo em que podia passar na rua toda uma noite chuvosa de inverno. Agora tudo o que eu desejava era não deixar desvanecer em mim a animação do instante, nem pela ação da chuva, da gota que me afligia ou do sentimento que me causasse o pinheirinho. Embora não tivesse a música de câmara nem encontrasse o solitário amigo violinista, ressoava em meu interior aquela graciosa melodia e eu próprio podia executá-la para mim, trauteando-a ao rítmico compasso de minha respiração. Continuei meu caminho a meditar. Sim, eu podia arranjar-me mesmo sem música de câmara e sem amigo, e era ridículo consumir-me no impotente desejo de calor humano. Solidão é independência, com ela eu sempre sonhara e a obtivera afinal após tantos anos. Era fria, oh! sim!, mas também era silenciosa e grande como o frio espaço silente em que giram as estrelas. De um salão de dança, diante do qual passei, me veio o ritmo de uma vívida música de jazz, como o odor bravio e quente da carne crua. Detive-me um momento; aquela espécie de música sempre tivera para mim um secreto encanto, apesar do muito que a detestava. O jazz me repugnava, mas me era cem vezes mais agradável do que toda a música acadêmica de hoje, me submergia profundamente no mundo dos impulsos com seu alegre e rude barbarismo e respirava uma ingênua e honrada honestidade. Permaneci um momento no faro, a sentir o cheiro da música sangrenta e aguda, a olfatar malignamente cobiçoso a atmosfera daquela sala. Parte da música, a lírica, era pegajosa melíflua e cheia de sentimentalismo; a outra, selvagem, extravagante, cheia de força; no entanto, ambas as partes caminhavam juntas, ingênua e amistosamente, e formavam um todo. Era música decadente. Devia haver música assim na Roma dos últimos césares. Naturalmente era uma baboseira, comparada com Bach e Mozart e a música dos grandes mestres; mas assim também era toda nossa arte, todo nosso pensamento, toda nossa aparência de cultura, quando comparada com a verdadeira cultura. E esta música tinha a vantagem de possuir uma grande sinceridade, de ser sinceramente negróide, cheia de um humor alegre e infantil. Tinha algo dos negros e algo dos americanos, que a nós, europeus, parecem tão fortes e cheios de infantilidade. Chegaria a Europa a ser assim? Já estava a caminho disto? Éramos nós, velhos conhecedores e reverenciadores da verdadeira poesia de outros tempos, apenas uma minoria estúpida de complicados neuróticos, que amanhã seriam esquecidos e ridicularizados? O que chamamos cultura, o que chamamos espírito, alma, o que temos por belo, formoso e santo, seria simplesmente um fantasma, já morto há muito, e considerado vivo e verdadeiro só por meia dúzia de loucos como nós? Quem sabe se realmente, nem era verdadeiro, nem sequer teria existido? Não teria sido mais que uma quimera tudo aquilo que nós, os loucos, tanto defendíamos?
Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

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