Estava
cavando um buraco quando reparei no Fábio Grande: com uma bacia de
plástico, ele tirava areia do tanque e ia enchendo um caixote de
madeira, ao lado. Parei de cavar e fiquei observando. Até então,
para mim, tanque era buraco ou castelo. Não sabia que podia tirar
areia dele, nem que era possível, usando uma bacia, remanejar um
volume tão grande — o caixote cheio era quase como um tanque de
areia paralelo. Fui até ele, empolgado:
—
Que
que cê tá fazendo?! Que que cê tá fazendo?!
Fábio
Grande me olhou com descaso:
—
Cê
vai ver.
Ofereci
ajuda, tentei pegar um pouco de areia com as mãos e jogar no
caixote, ele recusou:
—
Não
é assim que faz.
Magoado,
voltei ao meu buraco, mas a curiosidade era maior do que o orgulho:
não tirava os olhos do caixote, pensando numa maneira de ser aceito
na brincadeira. Depois de uns minutos, Fábio Grande deu o trabalho
por terminado. Pôs a bacia no chão, esfregou as mãos para tirar a
areia, me deu uma olhada de esguelha, só pra confirmar que seu
público estava atento, sentou em cima do caixote e anunciou,
orgulhoso, a quem pudesse interessar:
—
É
um trem.
Caramba,
um trem.
—
Vagão
ou locomotiva?
Ele
não tinha pensado nisso. Hesitou.
—
Locomotiva,
claro.
Era
sensacional. A bacia, o caixote, agora uma locomotiva: coisa de
gênio. E eu só tinha aquele buraquinho? Mandei a vaidade às favas:
—
Posso
brincar também?
—
Não.
—
Por
que não?
—
Porque
o trem é meu.
Dizendo
isso, Fábio Grande espalhou a bunda e esticou as pernas sobre o
caixote, de modo a não deixar nem um cantinho para um segundo
passageiro.
—
Nem
parece um trem.
—
Não,
é?
Ele
sorriu com o canto da boca, começou a chacoalhar o corpo e fazer
piuííí, piuííí, piuííí. Eu queria andar no trem. Eu queria
muito andar no trem do Fábio Grande. O mundo era só trem, trem,
trem, trem, trem: empurrei Fábio Grande para fora do caixote e me
sentei em seu lugar. Fiz piuííí, piuííí, olhei pra ele,
vingativo e assustado, e, já sabendo que minha glória duraria
pouco, resolvi colocar potência total, fiz tchuctchuctchuc,
piuúúúúú, tchuctchuctchuc, piuúúúúú, chacoalhando o corpo,
mostrando pra ele como é que se brinca de locomotiva. Fábio Grande
pegou a bacia do chão e a próxima coisa que eu sei é que estou
sendo levado às pressas pra enfermaria, o sangue escorrendo pelo meu
nariz e fazendo um trilho, sobre o qual Fábio Grande vem seguindo,
de olhos arregalados, “Ele que começou! Ele que começou!”, eu
chorando e apontando o caixote: “Por que só ele pode brincar no
trem? Por que só ele pode brincar no trem?! Por que só ele pode
brincar no trem?!”.
Antonio
Prata,
in Nu,
de botas
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