segunda-feira, 27 de março de 2017

Injustiça

Estava cavando um buraco quando reparei no Fábio Grande: com uma bacia de plástico, ele tirava areia do tanque e ia enchendo um caixote de madeira, ao lado. Parei de cavar e fiquei observando. Até então, para mim, tanque era buraco ou castelo. Não sabia que podia tirar areia dele, nem que era possível, usando uma bacia, remanejar um volume tão grande — o caixote cheio era quase como um tanque de areia paralelo. Fui até ele, empolgado:
Que que cê tá fazendo?! Que que cê tá fazendo?!
Fábio Grande me olhou com descaso:
Cê vai ver.
Ofereci ajuda, tentei pegar um pouco de areia com as mãos e jogar no caixote, ele recusou:
Não é assim que faz.
Magoado, voltei ao meu buraco, mas a curiosidade era maior do que o orgulho: não tirava os olhos do caixote, pensando numa maneira de ser aceito na brincadeira. Depois de uns minutos, Fábio Grande deu o trabalho por terminado. Pôs a bacia no chão, esfregou as mãos para tirar a areia, me deu uma olhada de esguelha, só pra confirmar que seu público estava atento, sentou em cima do caixote e anunciou, orgulhoso, a quem pudesse interessar:
É um trem.
Caramba, um trem.
Vagão ou locomotiva?
Ele não tinha pensado nisso. Hesitou.
Locomotiva, claro.
Era sensacional. A bacia, o caixote, agora uma locomotiva: coisa de gênio. E eu só tinha aquele buraquinho? Mandei a vaidade às favas:
Posso brincar também?
Não.
Por que não?
Porque o trem é meu.
Dizendo isso, Fábio Grande espalhou a bunda e esticou as pernas sobre o caixote, de modo a não deixar nem um cantinho para um segundo passageiro.
Nem parece um trem.
Não, é?
Ele sorriu com o canto da boca, começou a chacoalhar o corpo e fazer piuííí, piuííí, piuííí. Eu queria andar no trem. Eu queria muito andar no trem do Fábio Grande. O mundo era só trem, trem, trem, trem, trem: empurrei Fábio Grande para fora do caixote e me sentei em seu lugar. Fiz piuííí, piuííí, olhei pra ele, vingativo e assustado, e, já sabendo que minha glória duraria pouco, resolvi colocar potência total, fiz tchuctchuctchuc, piuúúúúú, tchuctchuctchuc, piuúúúúú, chacoalhando o corpo, mostrando pra ele como é que se brinca de locomotiva. Fábio Grande pegou a bacia do chão e a próxima coisa que eu sei é que estou sendo levado às pressas pra enfermaria, o sangue escorrendo pelo meu nariz e fazendo um trilho, sobre o qual Fábio Grande vem seguindo, de olhos arregalados, “Ele que começou! Ele que começou!”, eu chorando e apontando o caixote: “Por que só ele pode brincar no trem? Por que só ele pode brincar no trem?! Por que só ele pode brincar no trem?!”.
Antonio Prata, in Nu, de botas

Nenhum comentário:

Postar um comentário