quarta-feira, 15 de março de 2017

Exéquias

Quis o destino, que é um gozador, que aqueles dois se encontrassem na morte, pois na vida jamais se encontrariam. De um lado Cardoso, na juventude conhecido como Dosão, depois Doso, finalmente - quando a vida, a bebida e as mulheres erradas o tinham reduzido à metade - Dozinho. Do outro lado Rodopião Farias Mello Nogueira Neto, nenhum apelido, comendador, empresário, um dos pós-homens da República, grande chato. Grande e gordo. O seu caixão teve que ser feito sob medida. Houve quem dissesse que seriam necessários dois caixões, um para o Rodopião, outro para o seu ego. Já Dozinho parecia uma criança no seu caixaozinho. Um anjo encardido e enrugado. De Dozinho no seu caixão, disseram:
- Coitadinho.
De Rodopião:
- Como ele está corado!
Ficaram em capelas vizinhas antes do enterro. Os dois velórios começaram quase ao mesmo tempo. O de Rodopião (Rotary, ex-ministro, benemérito do Jockey), concorridíssimo. O de Dozinho, em termos de público, um fracasso. Dozinho só tinha dois ao lado do seu caixão quando começaram os velórios. Por coincidência, dois garçons.
Tanto Dozinho quanto Rodopião tinham morrido por vaidade. Dozinho, apesar de magro (“esquálido”, como o descrevia carinhosamente dona Judite, professora, sua única mulher legítima), se convencera de que estava ficando barrigudo e dera para usar um espartilho. Para não fazer má figura no Dança Brasil, onde passava as noites. As mulheres do Dança Brasil, só por brincadeira, diziam sempre: “Você está engordando, Dozinho. Olhe essa barriga.” E Dozinho apertava mais o espartilho. Um dia caiu na calçada com falta de ar. Não recuperou mais os sentidos. Claro que não morreu só disso. Bebia demais. Se metia em brigas. Arriscava a vida por um amigo. Deixava de comer para ajudar os outros. Se não fosse o espartilho, seria uma navalha ou uma cirrose.
Rodopião tinha ido aos Estados Unidos fazer um implante de cabelo e na volta houve complicações, uma infecção e - suspeita-se - uma certa demora deliberada de sua mulher em procurar ajuda médica.
E ali estavam, Dozinho e Rodopião, sendo velados lado a lado. Dozinho, o bom amigo, por dois amigos. Rodopião, o chato, por uma multidão. O destino etc. Perto da meia-noite chegaram dona Judite, que recém-soubera da morte do ex-marido e se mandara de Del Castilho, e Magarra, o maior amigo de Dozinho. Magarra chorava mais que dona Judite. “Que perda, que perda”, repetia, e dona Judite sacudia a cabeça, sem muita convicção. A capela onde estava sendo velado Rodopião lotara e as pessoas começavam a invadir o velório de Dozinho, olhando com interesse para o morto desconhecido, mas sem tomar intimidades. Magarra quis saber quem era o figurão da capela ao lado. Estava ressentido com aquela afluência.
Dozinho é que merecia uma despedida assim. Um homem grisalho explicou para Magarra quem era Rodopião. Deu todos os seus t¡tulos. Magarra ficou ainda mais revoltado. Não era homem de aceitar o destino e as suas ironias sem uma briga. Apontou com o queixo para Dozinho e disse:
- Sabe quem é aquele ali?
- Quem?
- Cardoso. O ex-senador.
- Ah... - disse o homem grisalho, um pouco incerto.
- Sabe a Lei Cardoso? Autoria dele.
Em pouco tempo a notícia se espalhou. Estavam sendo velados ali não um, mas dois notáveis da nação. A frequência na capela de Dozinho aumentou. Magarra circulava entre os grupos enriquecendo a biografia de Cardoso.
- Lembra a linha média do Fluminense? Década de 40. Tati, Matinhos e Cardoso. O Cardoso é ele.
Também revelou que Cardoso fora um dos inventores do raio laser, só que um americano roubara a sua parte. E tivera um caso com Maria Callas na Europa. Algumas pessoas até se lembravam.
- Ah, então é aquele Cardoso?
- Aquele.
A capela de Dozinho também ficou lotada. As pessoas passavam pelo caixão de Rodopião, comentavam: “Está com ótimo aspecto”, e passavam para a capela de Dozinho. Cumprimentavam dona Judite, que nunca podia imaginar que Dozinho tivesse tanto prestígio (até um representante do governador!), os dois garçons e Magarra.
- Grande perda.
- Nem me fale - respondia Magarra.
Veio a televisão. Magarra foi entrevistado. Comentou a ingratidão da vida. Um homem como aquele - autor da Lei Cardoso, cientista, com sua fotografia no salão nobre do Fluminense, homem do mundo, um dos luminares do seu tempo - só era lembrado na hora da morte. As pessoas esquecem depressa. O mundo é cruel. A câmara fechou nos olhos lacrimejantes de Magarra. A esta altura tinha mais público para o Dozinho do que para o Rodopião. Pouco antes de fecharem os caixões chegou uma coroa, para Dozinho.
Do Fluminense.
O acompanhamento dos dois caixões foi parelho, mas a televisão acompanhou o de Dozinho. O enterro de Rodopião foi mais rápido porque o acadêmico que ia fazer o discurso esqueceu o discurso em casa. Todos se dirigiram rapidamente para o enterro do Cardoso, para não perder o discurso de Magarra.
- Cardoso! - bradou Magarra, do alto de uma lápide. - Mais do que exéquias, aqui se faz um desagravo. A posteridade trará a justiça que a vida te negou. Teus amigos e concidadãos aqui reunidos não dizem adeus, dizem bem-vindo à glória eterna!
Naquela noite, no Dança Brasil, antes de subir ao palco e anunciar o show do Rubio Roberto, a voz romântica do Caribe, Magarra disse para Mariuza, a favorita do Dozinho, que estranhara a ausência dela no cemitério àquela manhã. Mariuza se defendeu:
- Como é que eu ia saber que ele era tão importante?
E chorou, sinceramente.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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