terça-feira, 14 de março de 2017

Conversa meio a sério com Tom Jobim (III)


Tom, toda pessoa muito conhecida, como você, é no fundo o grande desconhecido. Qual é a sua face oculta?
A música. O ambiente era competitivo, e eu teria que matar meu colega e meu irmão para sobreviver. O espetáculo do mundo me soou falso. O piano no quarto escuro me oferecia uma possibilidade de harmonia infinita. Esta é a minha face oculta. A minha fuga, a minha timidez me levaram inadvertidamente, contra a minha vontade, aos holofotes do Carnegie Hal. Sempre fugi do sucesso, Clarice, como o diabo foge da cruz. Sempre quis ser aquele que não vai ao palco. O piano me oferecia, de volta da praia, um mundo insuspeitado, de ampla liberdade – as notas eram todas disponíveis e eu antevi que se abriam os caminhos, que tudo era lícito, e que poderia ir a qualquer lugar desde que fosse inteiro. Subitamente, sabe, aquilo que se oferece a um menor púbere, o grande sonho de amor estava lá e este sonho tão inseguro era seguro, não é Clarice? Sabe que a flor não sabe que é flor? Eu me perdi e me ganhei, enquanto isso sonhava pela fechadura com os seios de minha empregada. Eram lindos os seios dela através do buraco da fechadura.
Tom, você seria capaz de improvisar um poema que servisse de letra para uma canção? Ele assentiu e, depois de uma pequena pausa, me ditou o que se segue:

Teus olhos verdes são maiores que o mar.
Se um dia eu fosse tão forte quanto você eu te desprezaria e viveria no espaço.
Ou talvez então eu te amasse.
Ai! que saudades me dá da vida que nunca tive!

Como é que você sente que vai nascer uma canção?
As dores do parto são terríveis. Bater com a cabeça na parede, angústia, o desnecessário do necessário, são os sintomas de uma nova música nascendo. Eu gosto mais de uma música quanto menos mexo nela. Qualquer resquício de savoir-faire me apavora.
Gauguin, que não é meu predileto, disse uma coisa que não se deve esquecer, por mais dor que ela nos traga. É o seguinte: “Quando tua mão direita estiver hábil, pinta com a esquerda; quando a esquerda ficar hábil, pinta com os pés”. Isso responde ao seu terror do savoir-faire?
Para mim a habilidade é muito útil mas em última instância a habilidade é inútil. Só a criação satisfaz. Verdade ou mentira, eu prefiro uma forma torta que diga, do que uma forma hábil que não diga.
Você é quem escolhe os intérpretes e os colaboradores?
Quando posso escolher intérpretes, escolho. Mas a vida veio muito depressa. Gosto de colaborar com quem eu amo, Vinícius, Chico Buarque, João Gilberto, Nílton Mendonça, etc. E você?
Faz parte de minha profissão estar mesmo sempre sozinha, sem intérpretes e sem colaboradores. Escute, todas as vezes em que eu acabei de escrever um livro ou um conto, pensei com desespero e com toda a certeza de que nunca mais escreveria nada. Você, que sensação tem quando acaba de dar à luz uma canção?
Exatamente a mesma. Eu sempre penso que morri depois das dores do parto.
Veio a cerveja.
A coisa mais importante do mundo é o amor, a coisa mais importante para a pessoa como indivíduo é a integridade da alma, mesmo que no exterior ela pareça suja. Quando ela diz que sim, é sim, quando ela diz que não, é não. E durma-se com um barulho desses. Apesar de todos os santos, apesar de todos os dólares. Quanto ao que é o amor, amor é se dar, se dar, se dar. Dar-se não de acordo com o seu eu – muita gente pensa que está se dando e não está dando nada – mas de acordo com o eu do ente amado. Quem não se dá, a si próprio detesta, e a si próprio se castra.
Amor sozinho é besteira.
Houve algum momento decisivo na sua vida?
Só houve momentos decisivos na minha vida. Inclusive ter de ir, aos 36 anos, aos Estados Unidos, por força do Itamarati, eu que gostava já nessa época de pijama listrado, cadeira de balanço de vime, e o céu azul com nuvens esparsas.
Muitas vezes, nas criações em qualquer domínio, podem-se notar tese, antítese e síntese.
Você sente isso nas suas canções? Pense.
Sinto demais isso. Sou um matemático amoroso, carente de amor e de matemática.
Sem forma não há nada. Mesmo no caótico há forma.
Quais foram as grandes emoções de sua vida como compositor e na sua vida pessoal?
Como compositor nenhuma. Na minha vida pessoal, a descoberta do eu e do não-eu.
Qual é o tipo de música brasileira que faz sucesso no exterior?
Todos os tipos. O Velho Mundo, Europa e Estados Unidos estão completamente exauridos de temas, de força, de virilidade. O Brasil, apesar de tudo, é um país de alma extremamente livre. Ele conduz à criação, ele é conivente com os grandes estados da alma.
Clarice Lispector, in A descoberta do mundo

Nenhum comentário:

Postar um comentário