Quando
a gente aprende a ler, as letras, nos livros, são grandes. Nas
cartilhas - pelo menos nas cartilhas do meu tempo - as letras eram
enormes. Lá estava o A, como uma grande tenda. O B, com seu grande
busto e sua barriga ainda maior. O C, sempre pronto a morder a letra
seguinte com a sua grande boca.
O
D, com seu ar próspero de grão-senhor. Etc. Até o Z, que sempre me
parecia estar olhando para trás. Talvez porque não se convencesse
que era a última letra do alfabeto e quisesse certificar-se de que
atrás não vinha mais nenhuma. As letras eram grandes, claro, para
que decorássemos a sua forma. Mas não precisavam ser tão grandes.
Que eu me lembre, minha visão na época era perfeita. Nunca mais foi
tão boa. E no entanto os livros infantis eram impressos com letras
graúdas e entrelinhas generosas. E as palavras eram curtas. Para não
cansar a vista.
À
medida que a gente ia crescendo, as letras iam diminuindo. E as
palavras, aumentando. Quando não se tem mais uma visão de criança
é que se começa, por exemplo, a ler jornal, com seus tipos miúdos
e linhas apertadas que requerem uma visão de criança. Na época em
que começamos a prestar atenção em coisas como notas de pé de
página, bulas de remédio e subcláusulas de contrato, já não
temos mais metade da visão perfeita que tínhamos na infância, e
esbanjávamos nas bolas da Lulu e no corre-corre do Faísca.
Chegamos
à idade de ler grossos volumes em corpo 6 quando só temos olhos
para as letras gigantescas, coloridas e cercadas de muito branco, dos
livros infantis. Quanto mais cansada a vista, mais exigem dela.
Alguns recorrem à lente de aumento para seccionar as grandes
palavras em manejáveis monossílabos infantis. E para restituir às
letras a sua individualidade soberana, como tinham na infância.
O
E, que sempre parecia querer distância das outras. O R! Todas as
letras tinham pé, mas o R era o único que chutava. O V, que
aparecia em várias formas: refletido na água (o X), de muletas (o
M), com o irmão siamês (o W). O Q, que era um O com a língua de
fora.
De
tanto ler palavras, nunca mais reparamos nas letras. E de tanto ler
frases, nunca mais notamos as palavras, com todo o seu mistério. Por
exemplo: pode haver palavra mais estranha do que “esdruxulo”? É
uma palavra, sei lá.
Esdrúxula.
Ainda bem que nunca aparecia nas leituras da infância, senão teria
nos desanimado. Eu me recusaria a aprender uma língua, se soubesse
que ela continha a palavra “esdrúxulo”. Teria fechado a cartilha
e ido jogar bola, para sempre. As cartilhas, com sua alegre
simplicidade, serviam para dissimular os terrores que a língua nos
reservava. Como “esdrúxulo”. Para não falar em “autóctone”.
Ou, meu Deus, em “seborréia”!
Na
verdade, acho que as crianças deviam aprender a ler nos livros do
Hegel e em longos tratados de metafísica. Só elas têm a visão
adequada à densidade do texto, o gosto pela abstração e tempo
disponível para lidar com o infinito.
E
na velhice, com a sabedoria acumulada numa vida de leituras, com as
letras ficando progressivamente maiores à medida que nossos olhos se
cansavam, estaríamos então prontos para enfrentar o conceito básico
de que vovô vê a uva, e viva o vovô.
Vovô
vê a uva! Toda a nossa inquietação, nossa perplexidade e nossa
busca terminariam na resolução deste enigma primordial. Vovô. A
uva. Eva. A visão.
Nosso
último livro seria a cartilha. E a nossa última aventura
intelectual, a contemplação enternecida da letra A. Ah, o A, com
suas grandes pernas abertas.
Luís
Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola
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