sexta-feira, 17 de março de 2017

A derradeira morte de Quincas


Enquanto atravessavam a ladeira de São Miguel, a caminho do castelo, iam sendo alvo de manifestações variadas. No Flor de São Miguel, o alemão Hansen lhes ofereceu uma rodada de pinga. Mais adiante, o francês Verger distribuiu amuletos africanos às mulheres. Não podia ficar com eles porque tinha ainda uma obrigação de santo a cumprir naquela noite. As portas dos castelos voltavam a abrir-se, as mulheres surgiam nas janelas e nas calçadas. Por onde passavam, ouviam-se gritos chamando Quincas, vivando-lhe o nome. Ele agradecia com a cabeça, como um rei de volta a seu reino. Em casa de Quitéria, tudo era luto e tristeza. Em seu quarto de dormir, sobre a cômoda, ao lado de uma estampa de Senhor do Bonfim e da figura em barro do Caboclo Aroeira, seu guia, resplandecia um retrato de Quincas recortado de um jornal – de uma série de reportagens de Giovanni Guimarães sobre os subterrâneos da vida baiana –, entre duas velas acesas, com uma rosa vermelha embaixo. Já Doralice, companheira de casa, abrira uma garrafa e servia em cálices azuis. Quitéria apagou as velas, Quincas reclinou-se na cama, os demais saíram para a sala de jantar. Não tardou e Quitéria estava com eles:
O desgraçado dormiu...
Tá num porre mãe... – esclareceu Pé-de-Vento.
Deixa ele dormir um pouquinho – aconselhou Negro Pastinha. – Hoje ele tá
impossível. Também, tem direito...
Mas já estavam atrasados para a peixada de Mestre Manuel e o jeito, daí a pouco, foi despertar Quincas. Quitéria, a negra Carmela e a gorda Margarida iriam com eles. Doralice não aceitou o convite, acabara de receber um recado do doutor Carmino, viria naquela noite. E
o doutor Carmino, eles compreendiam, pagava por mês, era uma garantia. Não podia ofendêlo. Desceram a ladeira, agora iam apressados, Quincas quase corria, tropeçava nas pedras, arrastando Quitéria e Negro Pastinha, com os quais se abraçara. Esperavam chegar ainda a tempo de encontrar o saveiro na rampa.
Pararam, no entanto, no meio do caminho, no bar de Cazuza, um velho amigo. Bar mal freqüentado aquele, não havia noite em que não saísse alteração. Uma turma de fumadores de maconha ancorava ali todos os dias. Cazuza, porém, era gentil, fiava uns tragos, por vezes mesmo uma garrafa. E, como eles não podiam chegar ao saveiro com as mãos abanando, resolveram passar a conversa em Cazuza, obter uns três litros de cana. Enquanto o cabo Martim, diplomata irresistível, cochichava no balcão com o proprietário estupefato ao ver Quincas Berro Dágua no melhor de sua forma, os demais sentaram-se para uma abrideira de apetite por conta da casa, em homenagem ao aniversariante. O bar estava cheio: uma rapaziada sorumbática, marinheiros alegres, mulheres na última lona, choferes de caminhão de viagem marcada para Feira de Santana naquela noite.
A peleja foi inesperada e bela. Parece realmente verdade ter sido Quincas o responsável. Sentara-se ele com a cabeça reclinada no peito de Quitéria, as pernas estiradas. Segundo consta, um dos rapazolas, ao passar, tropeçou nas pernas de Quincas, quase caiu, reclamou com maus modos. Negro Pastinha não gostou do jeito do fumador de maconha. Naquela noite, Quincas tinha todos os direitos, inclusive o de estirar as pernas como bem quisesse e entendesse. E o disse. Não tendo o rapaz reagido, nada aconteceu então. Minutos depois, porém, um outro, do mesmo grupo de maconheiros, quis também passar. Solicitou a Quincas afastar as pernas. Quincas fez que não ouviu. Empurrou-o então o magricela, violento, dizendo nomes. Deu-lhe Quincas uma cabeçada, a inana começou. Negro Pastinha segurou o rapaz, como era seu costume, e o atirou em cima de outra mesa. Os companheiros da maconha viraram feras, avançaram. Daí em diante, impossível contar. Via-se apenas, em cima de uma cadeira, Quitéria, a formosa, de garrafa em punho, rodando o braço. Cabo Martim assumiu o comando.
Quando a refrega terminou com a total vitória dos amigos de Quincas, a quem se aliaram os choferes, Pé-de-Vento estava com um olho negro, uma aba do fraque de Curió fora rasgada, prejuízo importante. E Quincas encontrava-se estendido no chão, levara uns socos violentos, batera com a cabeça numa laje do passeio. Os maconheiros tinham fugido. Quitéria debruçava-se sobre Quincas, tentando reanimá-lo. Cazuza considerava filosoficamente o bar de pernas para o ar, mesas viradas, copos quebrados. Estava acostumado, a notícia aumentaria a fama e os fregueses da casa. Ele próprio não desgostava de apreciar uma briga. Quincas reanimou-se mesmo foi com um bom trago. Continuava a beber daquela maneira esquisita: cuspindo parte da cachaça, num esperdício. Não fosse dia de seu aniversário e cabo Martim chamar-lhe-ia a atenção delicadamente. Dirigiram-se ao cais. Mestre Manuel já não os esperava àquela hora. Estava no fim da peixada, comida ali mesmo na rampa, não iria sair barra fora quando apenas marítimos rodeavam o caldeirão de barro. No fundo, ele não chegara em nenhum momento a acreditar na notícia da morte de Quincas e, assim, não se surpreendeu ao vê-lo de braço com Quitéria. O velho marinheiro não podia falecer em terra, num leito qualquer.
Ainda tem arraia pra todo mundo...
Suspenderam as velas do saveiro, puxaram a grande pedra que servia de âncora. A lua fizera do mar um caminho de prata, ao fundo recortava-se na montanha a cidade negra da Bahia. O saveiro foi-se afastando devagar. A voz de Maria Clara elevou-se num canto marinheiro:

No fundo do mar te achei
toda vestida de conchas...”

Rodeavam o caldeirão fumegante. Os pratos de barro se enchiam. Arraia mais perfumada, moqueca de dendê e pimenta. A garrafa de cachaça circulava. Cabo Martim não perdia jamais a perspectiva e a clara visão das necessidades prementes. Mesmo comandando a briga, conseguira surrupiar umas garrafas, escondê-las sob os vestidos das mulheres. Apenas Quincas e Quitéria não comiam: na popa do saveiro, deitados, ouviam a canção de Maria Clara, a formosa do Olho Arregalado dizia palavras de amor ao velho marinheiro.
Por que pregar susto na gente, Berrito desgraçado? Tu bem sabe que tenho o coração fraco, o médico recomendou que eu não me aborrecesse. Cada idéia tu tem, como posso viver sem tu, homem com parte com o tinhoso? Tou acostumada com tu, com as coisas malucas que tu diz, tua velhice sabida, teu jeito tão sem jeito, teu gosto de bondade. Por que tu me fez isso hoje? – e tomava da cabeça ferida na peleja, beijava-lhe os olhos de malícia. Quincas não respondia: aspirava o ar marítimo, uma de suas mãos tocava a água, abrindo um risco nas ondas. Tudo foi tranquilidade no início da festa: a voz de Maria Clara, a beleza da peixada, a brisa virando vento, a lua no céu, o murmurar de Quitéria. Mas inesperadas nuvens vieram do Sul, engoliram a lua cheia. As estrelas começaram a apagar-se e o vento a fazer-se frio e perigoso. Mestre Manuel avisou:
Vai ser noite de temporal, é melhor voltar.
Pensava ele trazer o saveiro para o cais antes que caísse a tempestade. Era, porém, amável a cachaça, gostosa a conversa, havia ainda muita arraia no caldeirão, boiando no amarelo do azeite-de-dendê, e a voz de Maria Clara dava uma dolência, um desejo de demorar nas águas. Ao demais, como interromper o idílio de Quincas e Quitéria naquela noite de festa?
Foi assim que o temporal, o vento uivando, as águas encrespadas, os alcançou em viagem. As luzes da Bahia brilhavam na distância, um raio rasgou a escuridão. A chuva começou a cair. Pitando seu cachimbo, Mestre Manuel ia ao leme. Ninguém sabe como Quincas se pôs de pé, encostado à vela menor. Quitéria não tirava os olhos apaixonados da figura do velho marinheiro, sorridente para as ondas a lavar o saveiro, para os raios a iluminar o negrume. Mulheres e homens se seguravam às cordas, agarravam-se às bordas do saveiro, o vento zunia, a pequena embarcação ameaçava soçobrar a cada momento. Silenciara a voz de Maria Clara, ela estava junto do seu homem na barra do leme.
Pedaços de mar lavavam o barco, o vento tentava romper as velas. Só a luz do cachimbo de Mestre Manuel persistia, e a figura de Quincas, de pé, cercado pela tempestade, impassível e majestoso, o velho marinheiro. Aproximava-se o saveiro lenta e dificilmente das águas mansas do quebra-mar. Mais um pouco e a festa recomeçaria. Foi quando cinco raios sucederam-se no céu, a trovoada reboou num barulho de fim do mundo, uma onda sem tamanho levantou o saveiro. Gritos escaparam das mulheres e dos homens, a gorda Margô exclamou:
Valha-me Nossa Senhora!
No meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira.
Penetrava o saveiro nas águas calmas do quebra-mar, mas Quincas ficara na tempestade, envolto num lençol de ondas e espuma, por sua própria vontade.
Não houve jeito da agência funerária receber o esquife de volta, nem pela metade do preço. Tiveram de pagar, mas Vanda aproveitou as velas que sobraram. O caixão está até hoje no armazém de Eduardo, esperançoso ainda de vendê-lo a um morto de segunda mão. Quanto à frase derradeira há versões variadas. Mas quem poderia ouvir direito no meio daquele temporal? Segundo um trovador do Mercado, passou-se assim:

No meio da confusão
Ouviu-se Quincas dizer:
"–Me enterro como entender
Na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
Pra melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão."
E foi impossível saber
O resto de sua oração.”

FIM
Rio, abril de 1959
Jorge Amado, In A morte e a morte de Quincas Berro D’água

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