segunda-feira, 13 de março de 2017

A casa dos peões


A casa dos peões era uma construção comprida e retangular, um tipo de barracão. Lá dentro, as paredes eram caiadas e o chão não tinha pintura. Em três paredes havia janelas quadradas pequenas e, na quarta, uma porta bem sólida com uma tranca de madeira. Encostados na parede havia oito catres, cinco deles arrumados com cobertores e os outros três exibindo o forro de aniagem do colchão. Sobre cada catre havia um caixote de frutas pregado com a abertura para a frente, de modo que formava duas prateleiras para os pertences do ocupante do catre. E as prateleiras estavam cheias de pequenos objetos, sabonete e talco, lâminas de barbear e aquelas revistas de bangue-bangue que os homens das fazendas adoram ler e depois caçoar delas, mas em que acreditam secretamente. E havia remédios nas prateleiras, e pequenos frascos, e pentes; e penduradas nos pregos da lateral dos caixotes, algumas gravatas. Perto de uma parede havia um fogão de ferro fundido preto, com uma chaminé que atravessava o teto. No meio do barracão ficava uma mesa quadrada grande, coberta de cartas de baralho, e em volta dela havia caixotes reforçados para os jogadores se sentarem.
Por volta das dez da manhã, o sol jogava ali uma coluna clara, cheia de poeira, através de uma das janelas laterais, e moscas entravam e saíam do feixe de luz como estrelas cadentes.
A tranca de madeira se ergueu. A porta se abriu e um homem alto, velho, de ombros curvados entrou. Usava calça jeans e carregava uma vassoura grande na mão esquerda. Atrás dele vinha George e, atrás deste, Lennie.
O patrão tava esperando oceis ontem à noite – o velho disse. – Ficô loco da vida quando viu qu’oceis num tavam aqui pra trabaiá hoje de manhã. – Apontou com o braço direito, e da manga saiu um pulso que mais parecia um pau arredondado, mas não tinha mão. – Oceis pode ficá co’aquelas duas cama ali – disse, indicando os dois catres mais próximos do fogão.
George deu um passo à frente e jogou os cobertores em cima do saco de aniagem cheio de palha que era o colchão. Olhou dentro do caixote-prateleira e pegou uma latinha amarela dali de dentro.
Diz uma coisa. Que diabo é isso aqui?
Sei lá – respondeu o velho.
Aqui diz assim: “Acaba com piolho, barata e outras pragas”. Que porcaria de cama que ocê tá dando pra gente? A gente num qué nenhum ninho de rato.
O velho ajudante mudou a vassoura de posição e ficou segurando o cabo entre o cotovelo e a lateral do corpo, ao mesmo tempo que esticou a mão para pegar a lata. Estudou o rótulo com cuidado.
Vô te dizê uma coisa… – terminou por falar. – O último sujeito que ficô nessa cama aí era ferrero… um sujeito muito agradável, e o sujeito mais limpo qu’ocê já viu na vida. Tinha mania de lavá a mão até depois de comer.
Então, como foi que ele pegô piolho? – Dentro de George ia se formando uma raiva vagarosa. Lennie colocou sua trouxa no catre ao lado e se sentou. Ficou observando George com a boca aberta.
Vô te dizê uma coisa – respondeu o velho ajudante. – Esse ferrero aí… o nome dele era Whitey… era o tipo de sujeito que espalhava uns negócio desses aí, memo quando num tinha bicho nenhum… só pra tê certeza, sabe como é? Vô te contá o que ele costumava fazê… Na hora de comê, ele descascava as batata cozida e tirava cada manchinha, de qualquer tipo, antes de comê. E se tivesse uma mancha vermelha em um ovo, ele tirava também. Acabô indo imbora por causa da comida. Ele era esse tipo de sujeito… limpo. Tinha mania de se arrumá todo domingo, memo quando num ia a lugá nenhum, ele até colocava gravata, e daí ficava na casa dos pião.
Num sei não – George disse, cético. – Por que memo foi qu’ocê disse qu’ele foi imbora?
O velho colocou a lata no bolso e afagou o bigode branco espetado com os nós dos dedos.
Sei lá… ele… só pegô e foi imbora, do jeito que uns home vai. Disse que foi por causo da comida. Mas eu acho que ele só queria sigui em frente. Num falô que era por causo de mais nada fora a cumida. Só veio uma noite e disse assim: “Me paga meu serviço”, do jeito que uns home faiz.
George levantou o forro do colchão e olhou por baixo. Debruçou-se e inspecionou o enchimento com muita atenção. Lennie se levantou imediatamente e fez a mesma coisa com a cama dele. Afinal, George pareceu satisfeito. Desenrolou sua trouxa e colocou seus pertences na prateleira, a lâmina de barbear e um sabonete, o pente e um frasco de pílulas, o unguento e a munhequeira de couro. Então arrumou bem a cama com os cobertores. O velho disse:
Acho qu’o patrão vai passá por aqui daqui a uns minuto. Ele ficô nervoso de verdade de vê qu’oceis num tava aqui hoje de manhã. Chegô bem quando a gente tava tomando o café da manhã e disse assim, “Onde diabo tão os trabaiadô novo?”. E aproveitô pra discontá no estribero também.
George arrumou um pedaço de tecido enrugado da cama com um tapinha e se sentou.
Discontô no estribero? – perguntou.
Claro. Sabe como é, o estribero é preto.
Preto, é?
É. E também é um bom camarada. Ficô com as costa alejada no lugá que um cavalo deu um coice nele. O patrão descarrega tudo nele quando tá bravo. Mas o estribero num tá nem aí. Lê muito. Tem uns livro bem bom no quarto dele.
Que tipo de sujeito é esse patrão? – George perguntou.
Bom, ele é um sujeito bem justo. Às vezes fica bem loco da vida, mas é um home bom. Vou te dizê uma coisa… sabe o que ele feiz no Natal? Trouxe um garrafão de uísque bem aqui e disse: “Pode bebê, pessoal. O Natal só vem uma vez cada ano.”
Que diabo, num acredito que ele feiz isso! Um garrafão intero?
Isso memo. Jesus, como a gente se divertiu. Deixaram até o preto entrá naquela noite. Um carrocero chamado Smitty implicou co’o preto. Tava bem alto, também. Os otro num deixaro ele usá os pé, então o preto é que deu um jeito nele. Se tivesse usado os pé, o Smitty disse que ia tê matado o preto. Os otro disse que o preto tinha as costa alejada, e por isso o Smitty não ia podê usá os pé. – Fez uma pausa, saboreando a memória. – Depois todo mundo foi pra Soledad e armô a maió confusão. Eu num fui. Num tenho mais ânimo pra nada disso.
John Steinbeck, in Ratos e homens

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