terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Sobre a criança na velhice



Um amigo que está sofrendo a tristeza de ir ficando velho me escreveu e fez esta pergunta: “O que fazer para permanecer jovem? O que fazer para, na velhice, continuar a ter o desejo de viver?”. Acho que essa é pergunta mais dolorosa que fazem aqueles que se veem envelhecer. É o tema do filme Morte em Veneza, baseado no livro de Thomas Mann: um homem maduro, na fronteira da velhice – seus bigodes já estão grisalhos e as rugas marcam o seu rosto –, num hotel de Veneza, vê um jovem adolescente que brinca na praia. Aquela imagem de juventude se apodera dele com uma força insuportável. A imagem do jovem o atormenta e ele dele se enamora. Não tem nada a ver com homossexualidade. Não é isso que está em jogo. Na imagem do jovem ele vê a sua própria juventude perdida. O espelho é um sofrimento. Especialmente quando o espelho são os olhos de uma jovem que se levanta e, com um sorriso, nos oferece o seu lugar no metrô... Continuar a ser jovem sendo velho? Eu acho isso é possível. O apóstolo Paulo, sentindo a mesma coisa, disse: “Embora o nosso homem exterior se corrompa, o nosso homem interior se renova dia a dia”. Claro, há coisas que são perdidas, definitivamente. A pele, por exemplo: as rugas, a flacidez, a secura. Mas, com a perda, há ganhos. Na juventude, a pele é a face exterior da musculatura. Ela nada revela, a não ser os músculos. Na velhice, a pele deixa de ser a superfície exterior dos músculos e passa a ser a superfície exterior da alma. Os músculos podem ser obstáculos à manifestação da alma. Na velhice, a pele é o meio através do qual a alma se torna visível. Especialmente o rosto. Livre das intermediações da musculatura, a alma pode então realizar sua função artística de esculpir o rosto. Ela aparece no rosto. Acontece, então, a ocasião para que se realize o prometido pelo evangelista João: “... e o Poema se faz carne”. Tudo, então, vai depender dos poemas que estão guardados na alma. Pois a alma é apenas isso: o lugar onde os poemas estão guardados. E o rosto vai então revelar uma beleza que a juventude não deixava ver. Ou, quem sabe, o inverso, uma feiura que a juventude não deixava ver. Velhice é o tempo da verdade da alma. Os velhos terão rosto de criança se a criança eterna continuar viva dentro deles. E a criança, como disse Zaratustra, é “inocência e esquecimento, um novo início, uma brincadeira, um moto-contínuo, um primeiro movimento, um ‘Sim’ sagrado...”. As crianças jamais desejam ser aposentadas de ser crianças. O terrível e mortal é quando o homem se aposenta. Não estou me referindo simplesmente ao momento em que não é mais necessário comparecer ao trabalho. Estou me referindo àquele momento quando um homem ou uma mulher atracam o seu barco e se entregam à tola ilusão de, finalmente, ter paz. Mas paz, precisamente, é o que a alma não deseja. A alma deseja o perigo, o desconhecido. A alma é uma águia que ama as alturas, as montanhas geladas, o mar desconhecido, os abismos. A alma é guerreira: “Pugno, ergo sum” – luto, logo existo. É preciso que haja sempre uma batalha a ser travada. A paz desejada (o sonho do “Sítio do Vovô”) logo se transforma num charco de água parada. A segurança é a mãe do tédio. E no tédio as serpentes chocam seus ovos. “Homens velhos devem ser exploradores, não importa onde... Temos de estar sempre nos movendo na direção de uma nova intensidade, de uma união mais alta, de uma comunhão mais profunda... Nos movendo através de uma desolação escura, fria e vazia: o grito das ondas, o grito do vento, as águas imensas das gaivotas e dos golfinhos: no meu fim está o meu início” (T. S. Eliot). Nikos Kazantzakis é um autor que precisa ser lido. Dentre todos os seus livros, todos eles maravilhosos, o que fala mais perto do meu coração é Zorba, o Grego... Quem viu só o filme nada viu. Tentei ver o filme, pensando que seria igual ao livro, e não consegui chegar ao fim. Acontece que há certas sutilezas na escrita que não podem ser transformadas em imagens. Está relatado que Zorba, velho e doente, ao ver que a morte já estava dentro do seu quarto, levantou-se da cama, foi até a janela, e por longos minutos contemplou com sorriso e silêncio os cenários que se abriam à sua frente, o mundo maravilhoso, ao fundo as montanhas. De repente, pôs-se a relinchar como um cavalo, agarrou-se à janela e disse: “Um homem como eu deveria viver mil anos!”. Ditas essas palavras ele caiu morto... Zorba morreu criança.
Rubem Alves, in Do universo à jabuticaba

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