segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Ou é onça ou veado


O certo agora era não insistir. Quanto mais tentassem demovê-lo, mais encasquetado ele ficava. A única esperança era que ele mesmo mudasse de ideia, ou esquecesse o assunto no sono, como acontecera em outras ocasiões. De mais a mais, ninguém ali era tutor de Amâncio, se ele queria mesmo caçar sarna, que se coçasse sozinho depois.
No dia seguinte cedo, vestido de branco, de chapéu branco já meio amarelado e batina de couro cru, Amâncio passou em casa de Manuel Florêncio no largo. Queria que Manuel pusesse os olhos na venda de vez em quando e disse que não ia demorar. Olhando Amâncio discretamente e não notando sinal de arma debaixo da roupa, Manuel ficou descansado. O caso ficava dependendo dos homens, do trato que eles dessem a Amâncio.
Já tomou café? Tome café primeiro. Ainda está quente. — Carece não. Comi uma talhada de queijo e tomei umas coisas por cima. Vou andando para aproveitar a fresca.
Manuel Florêncio ia aparelhar umas tábuas de porta, não conseguiu começar. Aquela ideia de Amâncio não estava condizendo. Vamos que os homens não gostassem e o recebessem com quatro pedras: quem é que ia ter mais sossego na cidade por muitos dias? Isso de mexer com quem está quieto pode chamar tempestade. A menos que Amâncio estivesse só fazendo fita. Se ele voltasse dizendo que tinha entrado na tapera, conversado e arrotado, feito e acontecido, trançado e chacoalhado, convinha não mostrar descrença: porque aí ele podia se ver na obrigação de ir mesmo e fazer tudo o que havia inventado; a coragem falseada na primeira vez tinha de ser arranjada de qualquer maneira na segunda.
Manuel Florêncio chegou na porta, olhou para o cartório em frente, lá na rua de cima. Muita gente nas janelas, outros do lado de fora, olhando, gesticulando. De lá se via a estrada depois da ponte, os pastos, a tapera meio escondida entre árvores. Manuel largou o serviço e subiu o largo, chegou ao cartório quando Amâncio dobrava a quina da cerca.
Ele vai mesmo. Aquele tira leite em onça.
E vai entrar pela frente, o danado.
É agora. Se voltar logo é porque foi escorraçado.
O chapéu branco de Amâncio desapareceu atrás do capim alto da beira da cerca, reapareceu mais adiante, tornou a sumir.
Eu não disse que ele ia? Amâncio tem partes.
Agora tudo podia acontecer. Uns achavam que não ia haver nada, os homens recebiam Amâncio na porta, conversavam por alto e despachavam; ele voltaria dizendo que estivera lá e conversara (não estaria mentindo) e o resto seria inventado no caminho de volta. Já outros diziam que Amâncio não era homem para ser despachado da porta de ninguém, mormente quando chegava vestido de cerimônia. Para sossegar os apreensivos, Manuel Florêncio informou que estivera com Amâncio na hora da saída e que não vira nele volume de arma.
Não obsta. Ele pode voltar e apanhar a carabina. Ainda ontem andou engraxando ela.
Ouvindo isso, Manuel marcou a intenção de consumir com a carabina antes que Amâncio voltasse.
Nisso Geminiano apareceu lá embaixo com a primeira carroça de areia. Os que estavam no cartório despencaram para ele saltando buracos, o rego, as aparas de lata despejadas da oficina de João José.
Ele foi. Amâncio foi. Está lá — gritavam sem fôlego.
Foi aonde? — perguntou Geminiano meio assustado com a zoeira.
Foi conversar com os homens. Já está lá.
Conversar? Não vai ter com quem. O tempo lá é curto.
Está lá conversando.
Só eu vendo.
Pois é. Veja se bispa alguma coisa.
Geminiano não deu resposta, apenas fez um ruído chiado com os lábios, o que as pessoas interpretaram como sinal de desdém pela incumbência, mas o Serrote entendeu como ordem para ir andando.
Olhando a carroça a se distanciar, as rodas ferradas mordendo o chão, alta de areia, a pá cravada em cima para o trabalho de descarga, muita gente teve inveja daquela geringonça bamboleante, que em pouco tempo estaria entrando num território nebuloso, que eles só conheciam de longe.
Manuel Florêncio voltou à oficina, mexeu nas tábuas, não conseguiu engrenar serviço. Lembrou-se do pedido de Amâncio, agarrou-se à desculpa. Como poderia ele trabalhar e ao mesmo tempo vigiar a venda?
A porta da venda estava apenas encostada, deixando uma fresta que o vento do beco reduzia e alargava, rangendo as dobradiças. Manuel empurrou-a, entrou piscando para acostumar a vista à penumbra, raspou a cabeça num cacho de bananas pendurado de um caibro. Um rato chiou no escuro e desapareceu num amontoado de enxadas. Se Amâncio não tomasse vergonha e armasse umas ratoeiras, ainda ia ter de pedir licença aos ratos para lidar na venda. Nunca se viu pessoa mais desmazelada. Dormindo ali mesmo nos fundos, entre sacos e caixotes de mantimentos, como é que tinha coragem de deixar a rataria andar livre por toda a parte?
Manuel Florêncio escancarou a porta, calçou-a com um machado apanhado do monte, abriu as janelas. O ar novo entrou ligeiro balançando baldes, cafeteiras, réstias de cebola, rédeas e cordas de sedenho, uns dois arreios. O chão precisava de vassoura, o balcão precisava de uma limpeza com pano molhado para tirar aquelas argolas de fundo de copo de cachaça, os derramados de açúcar, a gordura salgada dos pesos de carne-seca, os farelos de rapadura e farinha. Manuel apanhou vassoura e água, borrifou o chão para não levantar poeira e começou a limpeza.
A freguesia foi aparecendo esparsa, pingando. Um menino queria uma rapadura bem clara para fazer doce de cidra, só servia bem clara, era recomendação da mãe. Manuel mandou o menino escolher ele mesmo, e continuou varrendo, de vez em quando se abaixando para apanhar um coco, um rolo de fumo, um par de chinelas escorregado da pilha. Uma velhinha pretinha, encolhidinha, trêmula no falar e no estar, queria meia quarta de fumo para mascar, mas seu Amâncio fizesse a caridade de medir bem medido. Manuel larga a vassoura, torce e quebra com as mãos um palmo grande de fumo, dá à velhinha. Ela cheira, morde um pedaço para ver se serve, começa a desamarrar o lenço. Manuel segura o punho velhinho, franzino, cinzento.
Não precisa, minha vó. É presente.
Ela ajunta fumo, lenço e dinheiro depressa, tremendo.
Nosso Senhor lhe pague, seu Amâncio. Nosso Senhor lhe pague muito. — E sai enfiando fumo e lenço de qualquer jeito no bolso da saia.
Chegam outras pessoas, homens, para conversar.
Epa, seu Manuel. Está de vendeiro?
Manuel explica a razão de estar ali, quer saber se já chegaram notícias de Amâncio. Ninguém sabe nada ainda, mas o clima é de otimismo: a demora é bom sinal, sinal de conversa; e conversa demorada, briga adiada.
Vai chegando mais gente, sentam-se nos sacos, mas respeitam os de farinha e evitam os de sal, até nos rolos de arame se sentam, com as pernas avançadas por causa das farpas, uns apanham punhados de amendoim de um saco, vão comendo e guardando as cascas no bolso para esconder estrago, outros comem farinha ou mastigam milho, feijão, o que estiver mais perto, e sopram os pedaços no chão.
Acabada a limpeza, Manuel senta-se de banda no balcão, uma perna pendurada, outra assentada. A conversa se anima.
Amâncio agiu certo. Para saber se numa moita tem onça é preciso chegar perto. Se a gente fica espiando de longe, nunca sabe se o bicho que está lá é onça mesmo ou um veadinho manso, desses que comem na mão. Tirando Geminiano, que agora deu pra esconder leite, quem é que já viu esses homens de perto, para poder dizer se são onça ou veado?
Quem falou isso foi Dildélio Amorim, na sua linguagem de caçador.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

Nenhum comentário:

Postar um comentário