sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

O livro (trecho)

Tinham-se passado cinco anos desde que Marta, Ntunzi e Zacaria partiram. Um certo dia, Aproximado me chamou à sala onde se encontravam Noci e alguns garotos da vizinhança. Em cima da mesa estava um bolo com velas espetadas na cobertura de açúcar branco.
Conte as velas — ordenou-me o Tio.
Para quê?
Conte.
São dezesseis.
É a sua idade — disse Aproximado. E hoje é o seu aniversário.
Nunca antes me fizeram uma festa de anos. A bem dizer, nem me ocorria haver um dia em que eu nascera. Mas eis que ali, na sala sombria de nossa casa, a mesa estava posta com bolos e refrescos, decorada com fitas e balões. Sobre a cobertura do bolo estava escrito o meu nome.
Foram buscar o meu velho e sentaram-no junto a mim. Um por um, os convidados me entregaram prendas que desajeitadamente eu ia empilhando na cadeira ao lado. De repente, começaram a cantar e bater palmas. Percebi que, por um instante, era o centro do universo. Por instrução de Aproximado, apaguei, de um sopro, as velas. Nesse momento meu pai saiu da imobilidade e, sem que ninguém notasse, me apertou o braço. Era o seu modo de mostrar carinho.
Horas depois, de regresso ao quarto, Silvestre se internou de novo na sua habitual concha. Desde havia cinco anos que era eu quem tratava dele, quem o conduzia pelas trivialidades do dia-a-dia e o ajudava a comer e a lavar-se. Quem tratava de mim era o Tio Aproximado. Frequentemente, esse parente se sentava frente a Silvestre e, depois de um longo confronto de olhares, se interrogava em voz alta:
Você não está a fingir-se maluco apenas para não me pagar as dívidas?
No rosto de Vitalício não se vislumbrava rabisco de resposta. Eu chamava o Tio à razão: como podia aquele teatro ser tão convincente e duradouro?
É que são dívidas antigas, que datam de Jesusalém. Havia anos que seu pai já não pagava as mercadorias.
Para não falar do resto — acrescentava.
Aproximado nunca explicou em que consistia esse “resto”. E a lamentação prosseguia, sempre igual: que o cunhado nunca imaginou como era difícil viajar pela estrada para Jesusalém. Nem quanto o camionista precisava pagar para evitar emboscadas e escapar dos assaltos. Segredo da sobrevivência, alvitrava, é almoçar com o diabo e comer os restos com os anjos. E concluía, puxando lustro à esperteza:
É bem feito para mim. Comércio dentro da família é o que dá…
Eu posso pagar, Tio.
Pagar o quê?
As dívidas...
Não me faça rir, sobrinho.
Se havia dívidas, a verdade é que Aproximado não se vingava em mim. Pelo contrário, me protegia como a um filho que nunca teve. Não fosse por ele e eu nunca teria frequentado a escola do bairro. Não mais esquecerei o meu primeiro dia de aulas, o estranho sentimento de ver tantos meninos sentados numa mesma sala. Mais estranho ainda: era um livro que nos unia horas a fio, tecendo infâncias num mundo envelhecido. Durante anos eu me concebera como o único menino no universo. E durante uma vida essa solitária criança esteve interdita de olhar um livro. Por isso, desde a primeira lição, enquanto tabuada e abecedário fluíam na sala, eu acariciava os cadernos e me recordava do meu baralho de cartas.
O fascínio pelas aulas não passou desapercebido ao professor. Era um homem magro e seco, olhos cavos e envelhecidos. Falava com paixão sobre a injustiça e contra os novos-ricos. Uma tarde, levou a turma a visitar o local onde um jornalista que denunciara os corruptos tinha sido assassinado. No local, não havia monumento nem nenhum sinal de homenagem oficial. Apenas uma árvore, um cajueiro eternizava a coragem de quem arriscou a vida contra a mentira.
Deixemos flores neste passeio para limpar o sangue; flores para lavar a vergonha.
Foram essas as palavras do professor. Com o dinheiro do nosso mestre compramos flores e com elas cobrimos o passeio. No caminho de regresso, o professor seguia à minha frente e eu o vi tão sem peso que receei que, como um papagaio de papel, partisse em voo pelos céus.
Mia Couto, in Antes de nascer o sol

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