quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

No quarto da Valdirene

Mal ele entrou em casa, a mulher o tomou pelas mãos, ansiosa:
Estava aflita para você chegar.
E sussurrou, apontando dramaticamente para os lados da cozinha:
Tem um homem no quarto da Valdirene.
Sacudiu a cabeça com irritação:
Desde o primeiro dia eu achei que essa menina não era boa coisa. Ela nunca me enganou.
Valdirene, a jovem empregada, uma mulata de olhos grandes, não faria feio num palco.
Como e que você sabe? – perguntou ele, para ganhar tempo. Não partilhava da opinião da mulher: desde o primeiro dia achou que a Valdirene era ótima.
Sei porque vi. Escutei um ruído qualquer ai fora no corredor, olhei pelo olho mágico, e vi quando ela punha ele para dentro pela porta de serviço.
Ele quem?
O homem. Não sei quem é, só sei que é um homem. Deve ser o namorado dela, ou o amante, tanto faz. O certo e que os dois estão trancados lá no quarto faz um tempão.
Vai ver que já saiu.
Não saiu não, que eu não sou boba, fiquei de olho. Esta lá dentro com ela até agora.
E o que e que você quer que eu faça?
Quero que bote ele pra fora, essa e boa.
Por quê?
Ela botou as mãos na cintura:
Por quê? Você ainda pergunta por que? Então tem cabimento a gente deixar que a empregada receba homens no quarto dela? O que e que essa menina está pensando que minha casa é? Um motel? Se você não for lá, eu mesma vou.
Espera ai, vamos com calma, mulher. Você tem razão, mas deixa a gente raciocinar um pouco. Não podemos é perder a cabeça. Pode ser perigoso. Como é que ele é?
Não cheguei a ver direito. Só vi que era um homem. Para mim, basta.
Não posso ir lá no quarto dela sem mais nem menos. Quem sabe é algum parente? Um irmão, talvez…
Um irmão, talvez… Você tem cada uma! Pior ainda: que é que um irmão tem de ficar fazendo trancado no quarto com a irmã como eles dois estão? Você tem de pôr esse homem pra fora.
E se estiver armado? Ele pode muito bem estar armado.
Já que você está com medo…
Não estou com medo. Só que temos de agir com calma. Vamos ver como a gente sai dessa. Deixa comigo.
Ele respirou fundo e se meteu pela cozinha, ganhou a área de serviço, ficou à escuta. Nada, tudo quieto e às escuras no quarto da Valdirene. Bateu de leve na porta:
Valdirene.
Via-se pelas frestas da veneziana na própria porta que o quarto continuava no escuro. Ele bateu de novo:
Valdirene, está me ouvindo? Valdirene!
Escutou alguém se mexendo lá dentro e a voz estremunhada da moça:
Senhor?
Tem alguém com você ai dentro, Valdirene?
Tem não senhor.
Abra um instante, por favor.
Em pouco ela abria a porta, furtivamente, e o encarava sem piscar. Vestia um baby-doll pequenino e transparente que, sob a luz mortiça vinda da área, deixava quase todo seu corpo à mostra.
Acenda essa luz, minha filha.
Mais para vê-la melhor do que para olhar o quarto, pois mesmo no escuro podia-se verificar que ali dentro não havia mais ninguém. Luz acesa, ela se protegia discretamente com os braços, enquanto ele dava uma olhada rápida por cima do seu ombro:
Tudo bem. Desculpe o incômodo. Boa noite.
Voltou para a sala, onde a mulher o aguardava, tensa de expectativa. – E então?
Não tem ninguém.
Como não tem ninguém? Pois se eu vi o homem entrando!
Se viu entrando, não viu saindo. O certo é que não tem ninguém no quarto da Valdirene, além dela própria. Vamos dormir.
Como é que eu posso ir dormir sabendo que tem um estranho dentro de casa? Você vai voltar lá e olhar direito.
Eu olhei direito. Se não acredita, vai lá e olha você.
Quem e o homem nesta casa? Se você não for olhar eu não fico aqui dentro nem mais um minuto. Vou direto à polícia.
Ele ergueu os braços e os deixou cair, com um suspiro resignado:
Essa mulher, meu Deus. Agora é você que está com medo. Direto à polícia. Como se fosse um crime… Tudo bem, eu vou lá olhar direito.
Voltou a bater na porta da empregada:
Valdirene.
Desta vez ela respondeu logo:
Senhor?
Abra ai um instante, por favor.
Sim senhor.
Ela abriu e foi logo acendendo a luz. Estimulado pela nova oportunidade de vê-la tão de perto, ele perdeu a cerimônia e entrou no quarto. Sempre de olho nela e ouvido atento à mulher lá na sala. Ali dentro só cabia a cama e o armariozinho com uma cortina, atrás da qual ninguém poderia se esconder. Ainda assim ergueu o pano para se certificar. Satisfeito, voltou-se para a moça que, ao sentir seus olhos tão próximos, abaixara modestamente os dela:
Desculpe, minha filha. É que minha mulher, você sabe, quando ela cisma uma coisa… Mas pode dormir sossegada. Boa noite.
Na sala, a mulher voltou a questioná-lo:
Você olhou direito desta vez?
Não há como olhar errado. Um quarto deste tamaninho! Olhei o que tinha para olhar: a Valdirene e a cama.
A Valdirene e a cama? O que você quer dizer com isso?
Não quero dizer coisa nenhuma. É que ali dentro não cabe mais nada além da Valdirene e da cama.
Não é isso que parece estar insinuando, com essa sua cara.
Que é que tem minha cara? Você é que insinuou que tinha um homem lá dentro, não fui eu. Não me admiraria nada. Mas acontece que não tem. Só faltou olhar debaixo da cama.
Não admiraria nada – ela o imitou, com um trejeito. E ordenou, braço estendido:
Pois então vai olhar debaixo da cama.
Essa não! – relutou ele: – Já disse que não cabe ninguém…
Mas acabou indo. Pobre da menina, de novo importunada:
Me desculpe, Valdirene, mas é preciso que você abra aí outra vez.
Ela acendeu a luz, abriu a porta e deu-lhe passagem. Seus olhos o acompanharam impassíveis, quando ele entrou e se agachou para olhar debaixo da cama. De quatro, sentindo-se ridículo naquela postura, ele baixou a cabeça até que a ponta do queixo tocasse o chão, e enfiou-a sob o estrado. Seu nariz esbarrou de cheio em algo branco e macio – era nada menos que o traseiro de um homem.
Oi – assustou-se, recuando.
Oi – fez o homem, como um eco, encolhendo-se ainda mais.
Ele se ergueu. Perturbado, limpou a garganta, procurando dar firmeza à voz:
O senhor tem um minuto pra sair deste quarto.
Um último olhar para Valdirene, como a dizer que sentia muito mas não podia deixar de cumprir o seu dever, e foi ter com a mulher na sala:
Tinha sim. Tinha um homem debaixo da cama. Está satisfeita?
Eu não disse? E o que é que você fez?
Mandei que ele se pusesse pra fora. É o tempo de se vestir.
Meu Deus, ele estava nu?
Que é que você queria? Não sei é como ele pôde caber lá debaixo. Imagino o susto dele. E o da Valdirene, coitadinha.
No dia seguinte, mal amanheceu, ela despedia a Valdirene, coitadinha.
Fernando Sabino, in O gato sou eu

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