quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Meu Deus, não seja já!

Sim, cidadãos, esta primeira crônica que vos mando da minha pequena casa fria de 635 North Saint-Andrews, Hollywood, é uma declaração de amor à pátria. Se eu tiver que morrer, como disse o poeta, meu Deus, não seja já. Antes gostaria de rever tanta coisa, tanta coisa que aí gorjeia diferente. O azul do céu de maio, por exemplo, prisioneiro dos edifícios da rua Araújo Porto Alegre, eu sentado nas rubras cadeiras de palha do Café Vermelhinho, traçando a minha Brahma Extra, com um desejo vago de evasão. Não, não seja já. Quero ouvir cantar ainda Lúcio Rangel, nos grandes sambas de Noel, e Ismael Silva nos sambas dele próprio. Quero me locomover dificilmente, quero ir de oito em pé examinando o colo das mulheres sentadas, antipatizando com o trocador; ou então de lotação, apanhado quase a pescoção ali no princípio da avenida. Se eu tiver que morrer agora, juro, vou com um gosto de fel para o sepulcro. Hollywood é bonito, não há dúvida, mas não tem essas estrelas flores vida amores.
As estrelas aqui brilham vazias, num céu perfeitamente deslumbrado. Claro que aí nunca me teria sido possível ficar de joelho mole à vista de Marlene, entrando ofídica no Ciro’s, e tê-la por duas horas ombro a ombro, sentindo-lhe o perfume dos cabelos: namorava com outro, mas que importa? Claro que aí eu não poderia dar familiarmente adeus a Ann Sheridan, telefonar para minha amiga Margo, dançar com Lynn Bari, nem ouvir Fritz Lang contar seus filmes. Mas botante, tirante, que vale isso comparado com as nossas menininhas? Ó meninas em flor da pátria minha, que amores não sois vós! Gaveanas discretas; Leblonenses e Ipanemenses bicicletantes; Copacabanenses louras e salgadas; Botafoguenses familiais, de olhos íntimos; Cateteanas e Flamengas futingueiras, eternas pensionistas; Laranjeirenses calmas e bucólicas; moças da Glória, que nunca se sabe; jovens citadinas, funcionárias de caixas e pensões, arquivistas, secretárias, datilógrafas, a encher os cafés das duas horas para a média com canoa torrada, para a gemada, para o mingau (meu Deus, o mingau! inclusive um que tem uma camada de chocolate por cima e dorme dias nas vitrinas dos botecos!), para o malted milk (que aqui é bem melhor, entre parênteses), para a canjiquinha. E as grandes, bovaryanas bem-amadas, as grandes bem-amadas da Tijuca! Não há dúvida, nisso tudo entra muito de lirismo — mas não é o lirismo a expressão indizível da beleza?
E assim foi, assim é, assim será. Por isso eu peço sempre, eu peço muito: meu Deus, não seja já! Quero ainda ouvir cantar Araci de Almeida e, fora do rádio, minha cara amiga Mariinha, em fados tropicais, quando de noite, no Alcazar, ela se disputa em beleza com a lua de Copacabana. Eu não nego que gosto muito de viajar, e que depois de algum tempo começo a achar isso aí bastante pau. Mas, daqui do Pacífico, mesmo o que é pau dá flor aí no Atlântico, nessas pudendas praias da Niemeyer onde eu fui tantas vezes namorado.
Sim, não há dúvida: são saudades da pátria, e sobretudo do que na pátria é pobre e diferente. Aqui mulher é dízima infinita, todas louras, lindas e dentifrícias. Nunca verás moringa na janela; pano de mesa antigo; quadradinhos de jornal no prego da parede da “casinha”; empregada no portão; moça de rua transversal de olhar frustrado; bica sem água (isso é handicap!); açougue aceso de madrugada; bidé; cachorro vira-lata; flores de papel no fio elétrico; casais de crioulos a namorar no escuro em geniais posturas; meninas da Escola Amaro Cavalcanti; espetaculares saltadores de bonde andando; aquele chá noturno de família burguesa, com um galo de flanela cobrindo o bule; o footing em redor do coreto da praça; a redação do jornal, tão democrática; o bom cafajeste carioca de sola alta e gomina no cabelo; o abandono geral à humana vida, o abandono geral...
Não, meu Deus, se eu tiver que morrer, espera um pouco. Quero rever também outras colinas, com miséria talvez — quanta miséria! — mas com um manso perdão para a cidade. Quero rever também outras meninas, outras crianças, outras cucarachas: a nossa também tem muito mais bossa. Quero rever Governador, a ilha! que minha amiga Rachel de Queiroz pensa que é dela, mas não se engane, é nossa. Quero repalmilhar a praia de Cocotá, onde dez anos fui feliz. E rever Lopes Quintas, dona Mariana, Bambina, Campos de Carvalho, Ataulfo de Paiva, todos esses senhores e senhoras, e Acácias, rua minha! — e a praia de Ipanema e aquele apartamento nem tão pequenino, onde o nosso amor nasceu, ai!
Não, me dá, por favor, dois ou três anos — meu Deus, não seja já!
Dezembro de 1946
Vinicius de Moraes, in Para uma menina com uma flor

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