O
gênero humano pensante, isto é, a centésima-milésima parte do
gênero humano, quando muito, acreditara por muito tempo, ou pelo
menos por muitas vezes o repetira, que nós não tínhamos ideias
senão por intermédio dos sentidos, e que a memória era o único
instrumento com o qual podíamos reunir duas ideias e duas palavras.
Eis
por que Júpiter, símbolo da natureza, se enamorou, à primeira
vista, de Mnemósine, deusa da memória; e desse casamento nasceram
as nove Musas, que inventaram todas as artes.
Este
dogma, no qual se fundam todos os nossos conhecimentos, foi
universalmente aceito, e até mesmo a Nonsobre o adotou, embora se
tratasse de uma verdade.
Algum
tempo depois surgiu um argumentador, metade geômetra, metade
lunático, o qual se pôs a argumentar contra os cinco sentidos e
contra a memória. E disse ao reduzido grupo do gênero humano
pensante:
— Até
agora estivestes enganados, porque os vossos sentidos são inúteis,
porque as ideias são inatas em vós, antes de que qualquer dos
vossos sentidos possa ter operado; porque já tínheis todas as
noções necessárias quando viestes ao mundo; porque já sabíeis
tudo sem nunca haver sentido nada; todas as vossas ideias, nascidas
convosco, se achavam presentes em vossa inteligência, chamada alma,
e sem auxílio da memória. Esta memória não serve para coisa
alguma.
A
Nonsobre condenou tal proposição, não porque fosse ridícula mas
porque era nova. No entanto, quando em seguida um inglês começou a
provar, e a provar longamente, que não havia ideias inatas, que nada
era tão necessário como os cinco sentidos, que a memória muito
servia para reter as coisas recebidas pelos cinco sentidos, a
Nonsobre condenou suas próprias ideias, visto que eram agora as
mesmas de um inglês. Ordenou por conseguinte ao gênero humano que
acreditasse dali por diante nas idéias inatas, e perdesse toda e
qualquer crença nos cinco sentidos e na memória. O gênero humano,
em vez de obedecer, pôs-se a rir da Nonsobre, a qual entrou em
tamanha fúria, que quis mandar queimar a um filósofo. Pois dissera
esse filósofo que era impossível formar idéia completa de um
queijo sem o ter visto e comido; e chegou o celerado a afirmar que os
homens e mulheres jamais poderiam fazer trabalhos de tapeçaria se
não tivessem agulhas e dedos para as enfiar.
Os
liolistas juntaram-se à Nonsobre pela primeira vez na vida; e os
sejanistas, inimigos mortais dos liolistas, reuniram-se por um
momento a estes. Chamaram em seu auxílio os antigos dicastéricos; e
todos eles, antes de morrer, baniram unanimemente a memória e os
cinco sentidos, e mais o autor que dissera bem dessa meia dúzia de
coisas.
Um
cavalo que estava presente ao julgamento estatuído por aqueles
senhores, embora não pertencesse à mesma espécie e houvesse muita
coisa que os diferenciava, tal como a estatura, a voz, as crinas e as
orelhas, esse cavalo, dizia eu, que tanto possuía senso como
sentidos, contou a história a Pégaso, na minha estrebaria, e
Pégaso, com a sua ordinária vivacidade, foi repeti-la às Musas.
As
Musas que, durante uns cem anos, vinham singularmente favorecendo o
país, por tanto tempo bárbaro, onde se passava esta cena, ficaram
muito escandalizadas; amavam ternamente a Memória, ou Mnemósine,
sua mãe, à qual essas nove filhas são credoras de tudo quanto
sabem. Irritou-as a ingratidão dos homens. Não satirizaram os
antigos dicastéricos, os liolistas, os sejanistas e a Nonsobre,
porque as sátiras não corrigem ninguém, irritam os tolos e os
tornam ainda piores. Elas imaginaram um meio de esclarecê-los,
punindo-os. Os homens haviam blasfemado contra a memória; as Musas
lhes tiraram esse dom dos deuses, a fim de que aprendessem de uma vez
por todas, a que se fica reduzido sem o seu auxílio.
Aconteceu,
pois, que durante uma bela noite todos os cérebros se obscureceram,
de modo que no dia seguinte, de manhã, todos se acordaram sem a
mínima lembrança do passado. Alguns dicastérios, deitados com as
suas mulheres, quiseram aproximar-se delas por um resto de instinto
Independente da memória. As mulheres, que só muito raramente
possuem o instinto de entrar em contato com os maridos, repeliram
asperamente as suas desagradáveis carícias, e a maioria dos casais
acabou aos tapas.
Alguns
senhores, encontrando um chapéu, serviram-se dele para certas
necessidades que nem a memória nem, o bom senso justificam. E
senhoras empregaram para o mesmo uso as bacias de rosto. Os criados,
esquecidos do contrato que haviam feito com os patrões, entraram no
quarto dos mesmos, sem saber onde se achavam; mas, como o homem
nasceu curioso, abriram todas as gavetas; e, como o homem ama
naturalmente o brilho da prata e do ouro, sem ter para isso
necessidade de memória, apanharam tudo o que estava a seu alcance.
Os patrões quiseram bradar contra ladrão; mas, tendo-lhes saído do
cérebro a ideia de ladrão, não pôde a palavra lhes chegar à
língua. Cada qual, tendo esquecido o seu idioma, articulava sons
informes. Era muito pior que em Babel, onde cada um inventava
imediatamente uma língua nova. A inata inclinação dos criados
moços pelas mulheres bonitas se manifestou com tal premência que os
atrevidos se lançaram irrefletidamente sobre as primeiras mulheres
ou raparigas que encontraram, fossem elas taberneiras ou presidentas;
e estas, esquecidas das leis do pudor, deixaram-se manobrar com toda
liberdade.
Foi
preciso almoçar; ninguém sabia o que fazer para isso. Ninguém fora
ao mercado, nem para vender nem para comprar. Os criados tinham
vestido a roupa dos patrões, e os patrões a dos criados. Todo mundo
se olhava aparvalhado. Os que tinham mais jeito para obter o
necessário (e era a gente do povo) conseguiram um pouco com que
viver; aos outros, faltou-lhes tudo. O ministro e o arcebispo andavam
inteiramente nus, e seus palefreneiros passeavam, uns de hábito
vermelho, outros com dalmáticas: tudo estava confundido, iam todos
morrer de miséria e de fome, por falta de mútuo entendimento.
Ao
cabo de alguns dias, as Musas tiveram piedade dessa pobre raça: elas
são boas afinal, embora algumas vezes façam sentir aos maus a sua
cólera; suplicaram, pois, à mãe, que devolvesse àqueles blasfemos
a memória que lhes havia tirado. Mnemósine desceu à região dos
contrários, onde tão temerariamente a tinham insultado, e
falou-lhes nos seguintes termos:
—
Perdoo-vos, imbecis; mas lembrai-vos de
que sem sentido não há memória e sem memória não há senso.
Os
dicastéricos agradeceram-lhe secamente, e decidiram fazer-lhe uma
admoestação. Os sejanistas publicaram toda essa aventura na sua
gazeta; viu-se que ainda não estavam curados. Os liolistas
transformaram o caso numa intriga de corte. Mestre Coger, pasmado da
aventura e sem compreender patavina daquilo tudo, disse a seus alunos
do quinto ano este belo axioma: Non magis musis quam hominibus
infensa est ista quae vocatur memoria. (O que se chama memória
não é mais infenso às musas que aos homens).
Voltaire,
in Ridendo Castigat mores
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