quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Acerca do pranto e do riso

Em seu lugar apareceu o pranto, porque segue e vem depois do riso. Se fosse o riso como Jano - qui sua terga videt [Que vê as próprias costas]- choraria o mesmo riso. Não desconfia o pranto, não, da sua causa: inveja só ao riso a sua fortuna. Se o pranto e o riso aparecessem neste grande teatro no traje da verdade - sempre nua- sem dúvida seria a vitória do pranto. Mas vestido, ornado e armado de uma tão superior eloquência, que o riso se ria do pranto, não é merecimento, foi sorte. De tudo quanto ri saiu vestido, ornado, e armado o riso: riem os prados, e saiu vestido de flores; ri-se a aurora, e saiu ornado de luzes; e se aos relâmpagos e raios chamou a antiguidade risus Vestae et Vulcani, entre tantos relâmpagos, trovões e raios de eloquência, quem não julgará ao miserável pranto cego, atônito, e fulminado? Tal é a fortuna ou a natureza destes dois contrários. Por isso nasce o riso na boca, como eloquente, e o pranto nos olhos, como mudo. Mas se interdum lacrymae pondera vocis habent [às vezes as lágrimas têm a eficácia da voz] - assim mudo, e com lágrimas, assim triste, e vestido de luto - como costumavam os réus no Senado da antiga Roma - se apresenta hoje o pranto diante da majestade do sólio real e tribunal retíssimo dos seus eminentíssimos juízes, não presumindo que há de alcançar vitória ou aplauso, mas esperando a piedade e comiseração, que nunca negaram aos miseráveis e aflitos, os espíritos generosos e magnânimos.
Entrando, pois, na questão, se o mundo é mais digno de riso ou de pranto, e se à vista do mesmo mundo tem mais razão quem ri, como ria Demócrito, ou quem chora, como chorava Heráclito, eu, para defender, como sou obrigado, a parte do pranto, confessarei uma coisa e direi outra. Confesso que a primeira propriedade do racional é o risível, e digo que a maior impropriedade da razão é o riso. O riso é o sinal do racional, o pranto é o uso da razão. Para confirmação desta, que julgo evidência, não quero mais prova que o mesmo mundo, nem menor prova que o mundo todo. Quem conhece verdadeiramente o mundo, precisamente há de chorar, e quem ri, ou não chora, não o conhece.
Que é este mundo, senão um mapa universal de misérias, de trabalhos, de perigos, de desgraças, de mortes? E à vista de um teatro imenso, tão trágico, tão funesto, tão lamentável, aonde cada reino, cada cidade e cada casa continuamente mudam a cena, aonde cada sol que nasce é um cometa, cada dia que passa um estrago, cada hora e cada instante mil infortúnios, que homem haverá - se acaso é homem - que não chore? Se não chora, mostra que não é racional; e se ri, mostra que também são risíveis as feras.
Mas, se Demócrito era um homem tão grande entre os homens, e um filósofo tão sábio, e se não só via este mundo, mas tantos mundos, como ria? Poderá dizer-se que ele ria, não deste nosso mundo, mas daqueles seus mundos.
E com razão, porque a matéria de que eram compostos os seus mundos imaginados, toda era de riso. É certo, porém, que ele ria neste mundo, e que se ria deste mundo. Como, pois, se ria ou podia rir-se Demócrito do mesmo mundo e das mesmas coisas que via e chorava Heráclito? A mim, senhores, me parece que Demócrito não ria, mas que Demócrito e Heráclito ambos choravam, cada um a seu modo.
Que Demócrito não risse eu o provo: Demócrito ria sempre; logo nunca ria. A consequência parece difícil, e é evidente. O riso, como dizem todos os filósofos, nasce da novidade e da admiração, e cessando a novidade, ou a admiração, cessa também o riso; e como Demócrito se ria dos ordinários desconcertos do mundo, e o que é ordinário, e se vê sempre, não pode causar admiração nem novidade, segue-se que nunca ria rindo sempre, pois não havia matéria que lhe motivasse o riso.
Nem se pode dizer que Demócrito se incitava a rir de alguma coisa que visse ou encontrasse de novo, porque sempre e em todo o lugar ria, e quando saía de casa já saía rindo: logo, ria do que já sabia; logo, ria sem novidade nem admiração; logo, o que nele parecia riso não era riso.
Confirma-se mais esta verdade com o motivo e intenção de Demócrito, porque não pode haver riso que se não origine de causa que agrade: tudo o de que Demócrito se ria, não só lhe desagradava muito, mas queria mostrar que lhe desagradava; logo, não se ria; e se não ria, que era o que fazia, a que todos chamavam riso? Já disse que era pranto, e que Demócrito chorava, mas por outro modo. Ora, vede.
Há chorar com lágrimas, chorar sem lágrimas e chorar com riso: chorar com lágrimas é sinal de dor moderada; chorar sem lágrimas é sinal de maior dor; e chorar com riso é sinal de dor suma e excessiva. Para prova da primeira e segunda diferença de chorar com lágrimas, ou sem elas, é notável o exemplo que refere Heródoto de Psaminito, rei do Egito.
Perdendo Psaminito o reino, viu em primeiro lugar suas filhas vestidas como escravas, e não chorou; viu depois seu filho primogênito descalço e carregado de ferros, com mãos atadas e um freio na boca, e não chorou; e vendo este mesmo Psaminito, e com o mesmo coração, que um seu antigo criado pedia esmola, derramou infinitas lágrimas. Oh! grande rei e grande intérprete da natureza! Chora com lágrimas a miséria do criado, e sem lágrimas a desgraça dos filhos; assim respondeu ele à pergunta de Cambises: Domestica mala graviora sunt quam ut lacrymas recipiant [As desgraças domésticas são por demais cruéis para serem choradas]. - Com o mesmo pensamento, não menos régio nem menos varonil, Hécuba, com a coroa perdida e a pátria abrasada, proibiu as lágrimas às damas de Tróia, dizendo-lhes assim:

Quid effuso genas fletu rigatis?
Levia perpessae sumus, si flenda patimur
[Por que umedecer a face com tanto pranto?
Nossos males são muito pequenos, se nos deixam forças para chorar]
(Senec. in Tread, 410).

A dor moderada solta as lágrimas, a grande as enxuga, as congela e as seca. Dor que pode sair pelos olhos não é grande dor; por isso não chorava Demócrito, e, como era pequena demonstração da sua dor, não só chorar com lágrimas, mas ainda sem elas, para declarar-se com o sinal maior, sempre se ria.Nada digo que seja contrário aos princípios da verdadeira filosofiae da experiência. A mesma causa, quando é moderada e quando é excessiva produz efeitos contrários: a luz moderada faz ver, a excessiva cegar; a dor que não é excessiva rompe em vozes, a excessiva emudece. Desta sorte, a tristeza, se é moderada, faz chorar, se é excessiva, pode fazer rir; no seu contrário temos o exemplo: a alegria excessiva faz chorar, e não só destila as lágrimas dos corações delicados e brandos, mas ainda dos fortes e duros. Quando Minúcio, livre do cativeiro, apareceu ao seu exército, que era o romano: In laetitiam tota castra effusa sunt, ut prae gaudio militibus omnibus lacrymae manarent [Todo o exército se alegrou tanto, que vieram lágrimas aos olhos dos soldados] - diz Plutarco. Pois, se a excessiva alegria é causa do pranto, a excessiva tristeza, por que não será causa do riso? A ironia tem contrária significação do que soa: o riso de Demócrito era ironia do pranto: ria, mas ironicamente, porque o seu riso era nascido de tristeza, e também a significava; eram lágrimas transformadas em riso por metamorfoses da dor; era riso, mas com lágrimas, como aquele de quem disse Estácio:

Lacrymosos impia risus audiit
[A ímpia (Eurídice) ouviu teu riso mesclado de lágrimas].
Padre Antônio Vieira, in Sermões

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