terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A lei, nós é que fazemos

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Foi muito fácil estender a armadilha para Dolores. Até seus olhos reluziram, e sua cara se desmanchou.
Perdoe eu ficar corada, dom Fulgor. Não achei que dom Pedro reparasse em mim.
Nem dorme, só pensando na senhorita.
Mas ele, sim, tem de onde escolher. Sobram moças bonitas em Comala. O que elas dirão quando souberem?
Ele só pensa na senhorita, Dolores. A partir daí em diante, em mais ninguém.
O senhor faz com que eu sinta calafrios, dom Fulgor. Eu não podia nem imaginar.
É que ele é um homem reservado. Dom Lucas Páramo, que em paz descanse, chegou a dizer a ele que a senhorita não era digna dele. E ele calou-se, de pura obediência. Agora que o pai já não existe, não há nenhum impedimento. Foi sua primeira decisão; eu é que tardei em cumpri-la, por causa de minhas muitas ocupações. Vamos pôr como dia das bodas depois de amanhã. O que a senhorita acha?
Não está muito perto? Não tenho nada preparado. Preciso encomendar o enxoval. Vou escrever para a minha irmã. Ou não, é melhor mandar um emissário; mas seja como for, não estarei pronta antes do 8 de abril. Hoje é dia primeiro. Sim, mal e mal para o dia 8. Diga a ele para esperar uns diazinhos.
Por ele, seria agorinha mesmo. E se for por causa dos enxovais, nós podemos providenciá-los. A finada mãe de dom Pedro espera que a senhorita vista as roupas dela. Na família existe este costume.
É que, além do mais, tem uma coisa nestes dias. Coisa de mulher, o senhor sabe. Ah, que vergonha me dá dizer isso ao senhor, dom Fulgor. Faz com que eu perca as cores. Estou naquela fase da lua. Ai, que vergonha.
E daí? Casamento não é questão de fase de lua. É questão de gostar. E, havendo gosto, o resto é o resto.
Mas é que o senhor não me entende, dom Fulgor.
Entendo, sim. O casamento será depois de amanhã.
E deixou-a com os braços estendidos pedindo mais oito dias, oito dias e nada mais.
Que eu não me esqueça de dizer a dom Pedro — eta rapazinho vivo, esse Pedro! — de dizer a dom Pedro que não se esqueça de dizer ao juiz da comunhão de bens. ‘Lembre-se, Fulgor, de dizer isso amanhã sem falta’.”
Dolores, por sua vez, correu até a cozinha com uma bacia nas mãos, para pôr água quente: “Vou fazer com que isso desça mais depressa. Que desça esta mesma noite. Mas é que seja como for vai durar meus três dias. Não tem remédio. Que felicidade! Ah, que felicidade! Graças, meu Deus, por me dar dom Pedro!” E acrescentou: “Mesmo que depois eu odeie.”
Já pedi e ela está muito de acordo. O padre quer 60 pesos para passar por cima dos proclamas. Disse a ele que no devido tempo iria ter o que pediu. Ele diz que precisa arrumar o altar e que a mesa do seu refeitório está toda destrambelhada. Prometi que mandaremos para ele uma mesa nova. Disse que o senhor nunca vai à missa. Prometi que o senhor iria. E que desde que sua avó morreu, nunca mais deram os dízimos. Disse a ele que não se preocupasse. Está de acordo.
Você não pediu nada adiantado a Dolores?
Não, patrão. Não me atrevi. Essa é que é a verdade. Ela estava tão contente que não quis atrapalhar seu entusiasmo.
Você é uma criança.
Caramba! Eu, uma criança. Com 55 anos bem vividos. Ele mal começando a viver e eu a poucos passos da morte.”
Não quis quebrar seu contentamento.
Apesar de tudo, você é uma criança.
Está bem, patrão.
Semana que vem você vai ver Aldrete. E diz a ele que recolha a cerca. Invadiu terras da Media Luna.
Ele fez as medições direito. Eu conferi.
Pois vá lá e diga a ele que se enganou. Que calculou mal. Se for preciso, derruba as cercas.
E as leis?
Que leis, Fulgor? A lei, de agora em diante, nós é que fazemos. Você tem algum cabra valentão trabalhando na Media Luna?
Sim, um ou outro.
Pois mande todos em comitiva até Aldrete. Levanta contra ele uma ata acusando-o de “usufruto” ou do que você quiser. E faça com que ele se lembre de que Lucas Páramo já morreu. Que comigo é preciso negociar tudo de novo.
O céu ainda era azul. Havia poucas nuvens. O vento soprava lá em cima, embora aqui embaixo se transformasse em calor.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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