quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Uma bala quente

Eu não tinha nem idade. Menino fui para a serra e menino vim de lá. Os guardas tinham dito ao meu padrinho:
Escute, Tomazinho. Quer que ele dure? Não deixe que saia.
Porque eu jogava garrafas neles e o diabo e eles nos perseguiam a tiros. Todo mundo era inimigo.
E meu padrinho me disse:
Vou mandar você para o campo, para Cárdenas.
Mas eu já tinha resolvido cair fora. Tinha resolvi do com o Conde e com Baltazar. Os três nos jogávamos da amurada e como nadávamos! Por trinta centavos, que os pescadores pagavam para a gente, íamos nadando até o horizonte, com os anzóis entre os dentes. Então Baltazar arrebentou-se contra as rochas num mergulho e só se viu dele foi o sangue que subia, nem os cabelos foram encontrados.
Vamos para Oriente, Conde. Num caminhão de carga. Lá em Oriente sim, vamos poder inventar.
Poucos dias depois, encontramos as colinas onde estava a guerra. O acampamento se mudava o tempo todo, e os guerrilheiros andavam para lá de Minas de Huesito. E eu perguntei:
Isso é um acampamento? E onde durmo? E o que vou comer?
E o capitão me disse:
Mas você está pensando que vai dormir? Está achando que vai comer aqui? Aqui, o que se faz é dar tiro, e muito.
E com quê?
Isso, você vai ter de conseguir sozinho.
E eu pensei: ui. Isso está ruim. Que ruim está isso. Que culpa tenho eu, se eles resolveram fazer uma revolução sem armas?
Fiquei encarregado de contar caminhões com outro garoto, Chavito era seu nome, que era ainda mais pequeno que eu mas muito duro, sério mesmo, já estava há um bocado de tempo na coisa. Escondidos sobre um aterro, num desvio da estrada, contávamos os caminhões do exército da ditadura. Por ali eles traziam a comida e as armas. Para Chavito era bom eu ter vindo contar caminhões, porque quando ele chegava nos 13 ou 14 se perdia.
Passaram os meses nas colinas. Cada vez tínhamos mais gente. Nossa bandeira aparecia nos povoados da serra e os inimigos as descobriam nas sombras do amanhecer e não sabiam como.
Um belo dia, perto de Uvero, o capitão nos chamou e disse:
Escuta, é preciso que vocês levem essa mensagem para a planície.
Quem levava a mensagem era meu companheiro.
Se agarram você, já sabe: engula o papel.
Levava a mensagem debaixo de um curativo na sobrancelha. Tinham passado uma tintura vermelha embaixo do curativo. Caminhamos e caminhamos, sempre nos escondendo, e finalmente encontramos o pessoal que buscávamos. Eram três companheiros que vinham da cidade.
Vamos entrar no monte, que aqui perto estão os de capacete e com uma bateria de morteiro.
Um dos companheiros tinha uma Baby Thompson, que tinha arrancado de um guarda. E eu apontava para o céu, isso sim é bom, não vou devolver coisa nenhuma, rapaz, uma Baby Thompson! A verdade é que os ianques são uns filhos da mãe, mas lá sim fabricam coisas gostosas, essa Thompson pequeninha e tão fácil de manejar: você mete fogo em alguém com a Baby Thompson e nunca mais ele levanta. Essa sim, transforma um animal em caçador. Eu já sabia distinguir o que é bom, entre todas as armas. Sabia que a gente não ouve os estampidos quando está combatendo, e sim o zumbido de abelha das balas que passam roçando. Sabia atirar granadas. A granada é uma coisa perigosa, que você tem de saber esticar o braço e flexionar o corpo para atirá-la medindo justo a distância, porque depois que arrancam o pino a granada choca com um mosquito no ar e pode ter certeza que acaba com você na hora. Tudo isso eu sabia. Mas nunca tinha apertado o gatilho de um fuzil. E aquela Baby Thompson! E apontava para as nuvens e as perseguia pela mira, sem pressa, e perdoava a vida das nuvens enquanto me encantava com a Baby Thompson apertada entre as mãos e contra a cara e erguia a mira, ajustava, continha a respiração, me imaginava apertando o gatilho e lançando balas quentes contra o céu com aquela maravilha e até sentia o cheiro de pólvora no ar e então, de repente, ocorreu uma explosão, a explosão nos ouvidos, e quando tornei a abrir os olhos me disseram:
Não ponha a mão aí, não toque nisso, você está com as tripas todas de fora.
Estava num hospitalzinho improvisado, desses de folhas de guano que tinham na serra. Me amarraram as mãos no jirau de madeira. Eu não me lembrava nem de meu nome, nem bem pude falar e o primeiro que me ocorreu foi perguntar pela Thompson. Estava com ela dentro do meu corpo. Tinham feito a gente voar aos pedaços com um tremendo morteiro e todos tinham morrido e a Baby Thompson tinha se metido, em pedacinhos, por todo meu corpo. Ainda tenho uns ferrinhos metidos entre os ossos. Imagine se eu teria gostado de ter aquela arma.
No hospitalzinho o único desinfetante era a gasolina dos caminhões. Esse era o cheiro que eu sentia, o cheiro de gasolina, e também o cheiro de coisa podre que me saía das feridas. Olhava para o céu e via os urubus, com suas asas abertas, dando voltas e esperando. Via suas cabeças chatas à espreita e os bicos abertos e tão perto que até pareciam estar piscando um olho para mim dizendo: “Rapaz, como você é gostoso”. Eu gritava:
Desgraçado! Vocês não vão me comer, eu não.
Estava amarrado. Não podia atirar pedras neles, nem ameaçá-los com o punho.
Estendido e amarrado, tinham que me dar comida na boca. Dia e noite eu escutava as detonações e as explosões da guerra e pensava:
Não, pensava: – Aqui eu não fico.
Nem bem me desamarraram, eu fui embora. Fui com o Conde, que também estava ali porque tinham voado com os dedos de sua mão. Roubamos um revólver e fomos embora.
Chegamos à coluna de Raul. Nos levaram ao estado-maior e aí:
Olha aí, uns fujões.
Nos mandaram para a retaguarda. Eu só podia manejar revólveres, e com muito cuidado. A mão estava ficando inútil, com os dedos retorcidos que cada vez me doíam mais. Com um braço arrastava o outro braço e com uma perna a outra perna. Um dos olhos já não me servia mais para piscar.
Um dia, me disseram:
Escuta, fique sabendo que seu sócio caiu.
Quem? Como? Onde? Como estava vestido? Era o Conde, não era o Conde: era. A cara branquinha, seu cavanhaque e as costeletas muito fininhas, parecia um tipo de teatro. Tinham metido um tiro de canhão em seu peito, durante o assalto a um comboio.
Quando chegou a vitória, entrei grogue de sono dentro de um tanque. Cheguei grogue e não vi nada. Aquela gente toda, a alegria, as bandeiras: nada. Fui levado direto para um hospital, para pôr platina nas cadeiras e umas injeções na nuca para mover as per nas. Lá na serra tinham ligado mal minhas tripas, e eu vomitava tudo.
E veio a limpeza de Escambray e lá fui eu. E aconteceu o da Praia Girón e Fidel ia em um tanque praguejando e gritando maldições. As pessoas marchavam abraçando o tanque, toda a infantaria ali, para cobri-lo, e isso era o contrário do que deveria ser. Eu via essas caras sem uso, todas aquelas crianças que não se sabia se iam para a glória ou para a morte ou para onde, e não me deixavam ir, um oficial me disse:
Você não está em condições.
E você, o que está pensando, que eu vim só para olhar?
E disse mais para ele:
Filho da mãe. Quer a guerra só para você?
E com a perna boa pisava duro nesta terra.
Na confusão toda, me incorporei ao pessoal de Efigênio. Tivemos muitos mortos, porque sempre partíamos para lá das linhas. Esses vermes, dizíamos, era preciso esmagá-los bem, até acabar com eles. Eles atiravam contra nós balas teleguiadas com os Garand, a gente via as centelhas na noite, e nós avançando quatro ou cinco de cada vez e buscando aquelas chaminhas e depois não se sabia quem derrubava quem. As nossas balas eram normais, mas saíam as línguas de fogo das bocas dos fuzis, por isso era preciso pular para o lado em seguida, correndo do tiroteio de resposta. Nem bem dávamos um tiro e eles já estavam disparando, bang-bang, e eu estendido no chão sem capacete, não sabia o que era lutar com capacete, como é que vou enfiar um capacete na cabeça, se nem sei como se faz? Os tiros deles eram verdadeiras rajadas e os nossos eram tiros mesmo, um a um, para não desperdiçar e porque, além disso, não é nada fácil correr depois de dar tiros depressinha, sério mesmo, ainda mais se você estiver atirando há tempo e o fuzil não estiver muito limpo, o coice tremendo que ele tem, bup! bup! bup!, e que quantidade de granadas! As granadas flutuavam nos pântanos, como os mortos e as roupas. Eu me arrumava com a canhota. A mão direita já tinha virado garra. Como agora, que quando deixo cair alguma coisa, digo: esta mão de merda. Ainda que nem sempre seja culpa da mão. Esta mão já não me acompanha. A última vez que fui ao hospital para que me fizessem uma mão de borracha, os médicos queriam cortá-la aqui pela metade. Uns queriam abrir-me por aqui, outros por este lado. Tomavam minhas medidas e discutiam entre eles o jeito que iam me cortar a mão e eu saí correndo:
Não sou cobaia, porra!
Enquanto eu tiver uma perna para correr, nenhum médico me agarra. Já me operaram sete vezes, desde que voltei da serra. Não é bastante, para eles?
Sei que não estou bem. Qualquer dia desses caio dormindo e não acordo mais. Eu antes não sofria falta de ar, não me afogava, e agora tem vezes que fico com o pensamento em branco. Assim, como se me faltasse vida. Para a safra, não volto. Comecei a cortar cana e me amarraram. Não me deixam nem distribuir água. Uma vez fugi para colher laranjas e a ferida em minha barriga abriu, esta aqui que parece uma ara nha gigante. Me agacho, e sinto a folha de um facão entrando pouco a pouco em mim.
Mas eu tenho medo que os médicos me digam:
Você fica no hospital.
E eu me veja trancado e saiba que isso é o fim. Não, eu não vou nem ao dentista, eu não. É só ver os aparelhos e os médicos e toda aquela gente com curativos, que sinto arrepios. Eu morro com os pedacinhos da Baby Thompson no corpo, que, quando doem, mais que doer é como se conversassem comigo. E, se houver outra guerra, eu vou para a briga com meus pedacinhos da Baby Thompson no corpo.
Ruim mesmo, anda a mão. Dói e arde, uma vela metida aqui dentro, e às vezes esfria e o braço termina num bloco de gelo que não é meu. O ar-condicionado ataca muito minha mão. Eu gosto de ver os filmes umas dez vezes, mas no cinema tenho de meter a mão no bolso da calça e apertar com força, para dar-lhe calor e poder aguentar.
A Mariana, essa moça que é de Oriente, eu falei de ir ao cinema e ela me diz:
Agora não posso, porque estou trabalhando. Mas olha, amanhã sim.
E então acontece que amanhã quem não pode ir sou eu, porque sou eu quem está trabalhando e não vou chegar para o administrador e dizer:
Hoje não trabalho porque vou ao cinema. Imagine só.
Escuta, mas em que país você acha que está vivendo?
De vez em quando fico louco por causa da Mariana, a vontade de dizer para ela duas ou três coisas do muito que gosto dela, mas chego até onde está e fico mudo.
Você ia me dizer alguma coisa. Você tinha algo para me dizer.
E eu mudo de assunto.
Sei que tem uns sapos com os olhos vidrados na menina, e eu: eu sou medroso. E, mesmo assim, ela me dá uma atenção especial. Mas eu penso: e se eu falhar? E se ela não quiser nada comigo?
A última vez que me operaram, eu estava mal mesmo. Queria morrer porque a morte era o fim da dor que eu sentia. E fechava os olhos e via Mariana parada aos pés da cama, com as mãos apoiadas na grade de ferro, e ela me dizia: vim, viu só?
Soube que você estava doente. Não me pergunte como, mas eu soube.
E então ela fechava as mãos contra a grade de ferro e seus dedos ficavam brancos:
Vim para dizer que te quero.
Eu fechava os olhos e pensava nessa alegria.
Tenho certeza de que, quando disser a ela, ela vai dizer:
Mas por que você não me falou antes?
Deve ser a falta de coragem. Mas amanhã, eu falo. Falo mesmo. Ou na segunda-feira. Segunda-feira, sem falta, eu falo. E agora mesmo vou passar pelo trabalho dela. Que horas são? Para ver ela. Para fazer uma graça e esperar sua risada.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

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