quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Padre João Inácio

Ponto de reunião e fuxicos era a sala de jantar, que, por duas portas, olhava o alpendre e a cozinha. Como falavam muito alto, as pessoas se entendiam facilmente de uma peça para outra. Nos feixes de lenha arrumados junto ao fogão, na prensa de farinha, nos bancos duros que ladeavam a mesa, a gente se sentava e ouvia as emboanças do criado, um caboclo besta e palrador. Rosenda lavadeira cachimbava e engomava roupa numa tábua. O moleque José e a moleca Maria esgueiravam-se da sombra, perdiam a condição e a cor, não se distinguiam quase dos meninos de Teotoninho Sabiá.
Vivíamos todos em grande mistura — e a sala de visitas era inútil, com as cadeiras pretas desocupadas, uma litografia de S. João Batista e uma do inferno, o pequeno espelho de cristal que Amando, afilhado de meu pai, trouxera do Rio ao deixar o exército no posto de sargento. Esse espelho caía da parede e nunca se partiu, rivalizava com o copo azul, lembrança do casamento de meu avô, e o paliteiro que representava dois galos e uma raposa. Há meia dúzia de anos o paliteiro ainda existia, mau um dos galos se tinha ausentado.
As cadeiras pretas não se espanavam. Certo dia o tenente de polícia desconfiou delas, tirou o lenço e esfregou uma. Horrível. Minha mãe se enfureceu, tencionou besuntar os móveis com azeite de peixe, arrumar a farda não-me-toque daquele safadinho. Desistiu da vingança — e a sala se conservou deserta, abrindo-se raramente para receber D. Conceição, D. Clara, D. Águeda, outras senhoras que se enfastiavam no silêncio, espiando o santo, os demônios chifrudos, o espelho, a sola do marquesão empoeirado.
Afinal aquilo se transformou em paiol. Retirou-se a mobília, transportou-se para ali o milho que no depósito era um viveiro de borboletas. Ficara o grão exposto, aguardando a carestia por causa da seca, e a lagarta dera nele.
Desvalorizava-se agora. Indispensável tratá-lo com veneno, matar os bichos.
Uma festa para as crianças. Eu e minhas irmãs revolvemos a tulha cor de ouro, espalhando o arsênico. Dispensou-se o trabalhador — e nós nos encarregamos gostosamente da tarefa. Abandonamos a prensa de farinha, o armazém atravancado de ferragens, o quintal nu, donde se ouvia o descaroçador barulhento do Cavalo-Morto.
Na sala, mudada em celeiro, o nosso ambiente se alargava de chofre, adquiríamos liberdade. As sementes se derramavam no corredor, iam-se acumulando, formavam uma ladeira, que subíamos até alcançar as janelas. Daí dominávamos a rua, víamos os transeuntes mais baixos que nós. Seu Acrísio errava o caminho, tropeçava, batia nas paredes e rosnava: “Diabo! diabo! diabo!” Alguns passos à direita, Seu Chico Brabo maltratava João. No solo movediço achávamos firmeza. A nossa brincadeira representava utilidade
e não viriam desmancha-prazeres aquietar-nos, impor-nos disciplina.
Contudo uma sombra às vezes nos toldava a alegria: a recordarão do Vigário. Na cozinha e na sala de jantar pintavam-no terrível, uma espécie de lobisomem criado para forçar-nos à obediência. Citavam-se os despropósitos dele na igreja.
Isto não nos interessava. Tínhamos, porém, razão para temer aquele homem tenebroso por fora e por dentro. Não ria. O olho postiço, imóvel num círculo negro, dava-lhe aspecto sinistro.
Além disso Padre João Inácio habituara-se a cuidar de variolosos, viventes que infundiam pavor a toda a vila. Se aparecia notícia deles, as portas se fechavam, o comércio enfraquecia, nas pontas das ruas queimavam excremento de boi e creolina em cacos de telha. Uma noite levavam os infelizes, enrolados, paia os barracões de palha feitos nas brenhas, onde a carne doente apodrecia quase ao abandono, sobre folhas de bananeiras. Alguns enfermeiros imunizados furavam-lhes as pústulas com espinhos de mandacaru, lavavam-nas com aguardente e cânfora. Havia grande mortandade, e as marcas dos sobreviventes eram horrorosas. Os curandeiros dessa praga inspiravam tanto receio como as vítimas dela. Cercava-os uma faixa de isolamento. Admiração e repugnância.
Pois numa epidemia das mais violentas Padre João Inácio e Capitão Badega isentos de preservativos, se haviam estabelecido nos barracões. Gente medrosa sucumbira. Os dois tinham saído ilesos e, em consequência, virado comendadores. Distinção balda. O Vigário nunca chegou a Cônego.
E Capitão Badega permaneceu capitão, sumido na fazenda, insensível a honrarias, lendo César Cantu, governando vários filhos naturais e um lote de cabrochas.
Depois da façanha, Padre João Inácio arranjara tubos de linfa e começara a furar os braços da humanidade na vila e circunvizinhança. Os sertanejos não queriam meter a desgraça no corpo, adoecer por gosto; Se um médico tentasse a inoculação, haveria distúrbios. Mas aquela autoridade franzina usava despotismo, não descia a explicações. Insultava a canalha, raça de cachorro com porco. Mandava porque tinha poderes: era Albuquerque e sacerdote. E os paroquianos se deixavam contaminar, covardes, lamentando que S. Rev.ma não se dedicasse inteiramente às cerimônias do culto. Não se dedicava. Dirigia um partido político — e o culto lhe merecia fraca atenção.
Fora condiscípulo do Padre Cícero. Falava no taumaturgo, que principiava a notabilizar-se: apagado, sofrível, por não ser Albuquerque.
Padre João Inácio era pobre e tinha credores, que dominava. Conseguia, cheio de necessidades, exibir independência, injuriar, gritar.
Fomos vacinados na loja, graúdos e miúdos. Na surpresa, ignorando a tendência má do homem, não senti dor nem medo. Mas as feridas que vieram, resguardos, febre, quarenta dias sem toicinho, me pareceram obra do reverendo.
Graciliano Ramos, in Infância

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