Milton Nascimento, o Bituca
No
final de 1963, o que eu sabia a respeito de Bituca não era ainda
muita coisa e provinha de duas fontes: Marilton, meu irmão mais
velho, e o serviço de fofocas da turma do Levy. O Levy era um mundo
à parte dentro da cidade: dezessete andares e mais de cem
apartamentos, com uma população de umas quatrocentas pessoas, das
quais uns cinquenta eram jovens de ambos os sexos, com idade entre
treze e vinte e um anos. Construído por comerciantes judeus no
início dos anos 60, a um quarteirão da praça 7, Belo Horizonte,
Minas Gerais, Brasil, em pleno centro da cidade, o Levy era feio,
pesado, quadradão, gigantesco para o padrão. Tinha uma galeria em
ângulo que ligava a Avenida Amazonas à Rua Curitiba. Sabe-se lá
por qual predestinação, no Levy moraram a mesma época pessoas que
mais cedo ou mais tarde vieram a se destacar na cena da cultura
brasileira; gente como o escritor Júlio Gomide, o psicanalista Chaim
Samuel Katz, o ator Jonas Bloch e suas duas filhas, a cantora da
Jovem Guarda Martinha, “O Queijinho de Minas”, o maestro Wagner
Tiso, o menino Lô Borges, além de mim e meu recente amigo Bituca
que, sabe Deus como e este livro narra também viemos a nos destacar.
Digo
isso apenas a título de curiosidade pois, na realidade, exceto eu e
Martinha, nenhum daqueles chegou a fazer parte da “turma do Levy”
propriamente dita. Esse epíteto designava com abrangência os jovens
de diversas procedências que se encontravam todas as noites à
entrada da Amazonas e só mais raramente na entrada da Curitiba,
preferida pelas domésticas e babás do prédio.
Bituca
era o rapaz de vinte anos, preto, magricela e tímido que se mudara
havia pouco para a pensão de dona Benvinda, no quarto andar,
recém-chegado de uma pequena cidade do sul de Minas chamada Três
Pontas. O serviço de fofocas informava que tocava violão e cantava,
mas trabalhava mesmo era como datilógrafo num escritório das
Centrais Elétricas de Furnas, no vigésimo segundo andar de um
arranha-céu na praça Sete, a dois quarteirões do Levy. Já
Marilton sabia mais detalhes. Cantarolava em casa um samba bossa-nova
chamado “Barulho de Trem”, composição de Bituca: Banco de
estação lugar de despedida e emoção comigo é diferente, apenas
vim pra ver o movimento que tem barulho de trem...
Eu
era aquele rapaz de dezessete anos que saía escondido todos os dias,
ao meio-dia, tentando atravessar a galeria sem ser visto, rezando
para não aparecer ninguém, amaldiçoando-me por não ser invisível,
tudo porque agora morava ali, num meio de gente metida-a-sebo, como
dizia minha mãe, tão diferente de minha querida Santa Tereza, onde
tudo era muito bem definido — a Palha era a Palha, o Alto dos
Piolhos era o Alto dos Piolhos, o Baixo Mandiocal era o Baixo
Mandiocal — e de onde viera a contragosto. Com essa mudança,
aquele uniforme cáqui de estafeta do DCT, que antes eu envergava
como símbolo social de algum prestígio (e meio de andar nas
conduções municipais sem pagar, agora, naquele edifício burguês,
cheio de moças bonitas, se destituíra de qualquer importância e
era mesmo motivo de vergonha, um uniformezinho subalterno, de bibico
e tudo, causador de torturantes dias de angústia na mente tortuosa
de um rapazola entregador de telegramas. O pior era ser confundido
com um soldadinho.
Meu
pai Salomão, jornalista, também funcionário do DCT, já estava
tratando de minha transferência para um serviço interno, que não
exigisse uniforme.
Eu
também me mudara recentemente para o Levy. Minha antiga residência
de Santa Tereza, uma casa ampla e acolhedora, tornara-se, por
desígnio de mamãe, dona Maricota, sede de uma escola primária e
agora estávamos ali, pai, mãe e onze filhos, tentando nos adaptar à
Vida engaiolada no 17º andar, Marilton, vinte anos, era mais crooner
profissional do que estudante eternamente repetente do Colégio
Tristão de Athayde e frequentador do Ponto dos músicos, do qual
falarei adiante. Por esse fato é que logo desenvolveu afinidades com
Bituca e o levou a frequentar o nosso apartamento. Ambos tinham a
música no sangue.
A
primeira vez que Bituca entrou lá em casa foi para ensaiar no
“quarto dos homens”. Não sei por quê, achava meu pai com cara
de bravo. Talvez fossem seus profundos olhos azuis. Naquela noitinha
seu Salomão entreabriu a porta do quarto, enfiou a cara, olhou um
por um os três rapazes que estavam com Marilton. Bituca tremeu de
medo. Papai fechou a porta atrás de si:
— Será
que ele está bravo? — Bituca olhou inquieto para Marilton.
— Claro
que não. Vamos ensaiar.
Meu
irmão não percebia e nem tinha por que perceber o medo de Bituca.
Dali
a cinco minutos papai voltou com dois pratos de mexido. Ofereceu o
primeiro a Bituca, o outro a Wagner.
—
Ensaiar de barriga cheia é melhor não é
não? — e saiu do quarto.
Depois
voltou com mais dois pratos para Marilton e Marcelo Ferrari.
Logo
depois ouvi Bituca comentar com Marilton:
— Nunca
vi um troço tão bem recebido como esse prato de mexido. Eu já
estava cagando de medo.
Márcio
Borges, in Os sonhos não envelhecem
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