quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

"Diga-me com quem andás e te direi quem és"

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Milton Nascimento, o Bituca

No final de 1963, o que eu sabia a respeito de Bituca não era ainda muita coisa e provinha de duas fontes: Marilton, meu irmão mais velho, e o serviço de fofocas da turma do Levy. O Levy era um mundo à parte dentro da cidade: dezessete andares e mais de cem apartamentos, com uma população de umas quatrocentas pessoas, das quais uns cinquenta eram jovens de ambos os sexos, com idade entre treze e vinte e um anos. Construído por comerciantes judeus no início dos anos 60, a um quarteirão da praça 7, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, em pleno centro da cidade, o Levy era feio, pesado, quadradão, gigantesco para o padrão. Tinha uma galeria em ângulo que ligava a Avenida Amazonas à Rua Curitiba. Sabe-se lá por qual predestinação, no Levy moraram a mesma época pessoas que mais cedo ou mais tarde vieram a se destacar na cena da cultura brasileira; gente como o escritor Júlio Gomide, o psicanalista Chaim Samuel Katz, o ator Jonas Bloch e suas duas filhas, a cantora da Jovem Guarda Martinha, “O Queijinho de Minas”, o maestro Wagner Tiso, o menino Lô Borges, além de mim e meu recente amigo Bituca que, sabe Deus como e este livro narra também viemos a nos destacar.
Digo isso apenas a título de curiosidade pois, na realidade, exceto eu e Martinha, nenhum daqueles chegou a fazer parte da “turma do Levy” propriamente dita. Esse epíteto designava com abrangência os jovens de diversas procedências que se encontravam todas as noites à entrada da Amazonas e só mais raramente na entrada da Curitiba, preferida pelas domésticas e babás do prédio.
Bituca era o rapaz de vinte anos, preto, magricela e tímido que se mudara havia pouco para a pensão de dona Benvinda, no quarto andar, recém-chegado de uma pequena cidade do sul de Minas chamada Três Pontas. O serviço de fofocas informava que tocava violão e cantava, mas trabalhava mesmo era como datilógrafo num escritório das Centrais Elétricas de Furnas, no vigésimo segundo andar de um arranha-céu na praça Sete, a dois quarteirões do Levy. Já Marilton sabia mais detalhes. Cantarolava em casa um samba bossa-nova chamado “Barulho de Trem”, composição de Bituca: Banco de estação lugar de despedida e emoção comigo é diferente, apenas vim pra ver o movimento que tem barulho de trem...
Eu era aquele rapaz de dezessete anos que saía escondido todos os dias, ao meio-dia, tentando atravessar a galeria sem ser visto, rezando para não aparecer ninguém, amaldiçoando-me por não ser invisível, tudo porque agora morava ali, num meio de gente metida-a-sebo, como dizia minha mãe, tão diferente de minha querida Santa Tereza, onde tudo era muito bem definido — a Palha era a Palha, o Alto dos Piolhos era o Alto dos Piolhos, o Baixo Mandiocal era o Baixo Mandiocal — e de onde viera a contragosto. Com essa mudança, aquele uniforme cáqui de estafeta do DCT, que antes eu envergava como símbolo social de algum prestígio (e meio de andar nas conduções municipais sem pagar, agora, naquele edifício burguês, cheio de moças bonitas, se destituíra de qualquer importância e era mesmo motivo de vergonha, um uniformezinho subalterno, de bibico e tudo, causador de torturantes dias de angústia na mente tortuosa de um rapazola entregador de telegramas. O pior era ser confundido com um soldadinho.
Meu pai Salomão, jornalista, também funcionário do DCT, já estava tratando de minha transferência para um serviço interno, que não exigisse uniforme.
Eu também me mudara recentemente para o Levy. Minha antiga residência de Santa Tereza, uma casa ampla e acolhedora, tornara-se, por desígnio de mamãe, dona Maricota, sede de uma escola primária e agora estávamos ali, pai, mãe e onze filhos, tentando nos adaptar à Vida engaiolada no 17º andar, Marilton, vinte anos, era mais crooner profissional do que estudante eternamente repetente do Colégio Tristão de Athayde e frequentador do Ponto dos músicos, do qual falarei adiante. Por esse fato é que logo desenvolveu afinidades com Bituca e o levou a frequentar o nosso apartamento. Ambos tinham a música no sangue.
A primeira vez que Bituca entrou lá em casa foi para ensaiar no “quarto dos homens”. Não sei por quê, achava meu pai com cara de bravo. Talvez fossem seus profundos olhos azuis. Naquela noitinha seu Salomão entreabriu a porta do quarto, enfiou a cara, olhou um por um os três rapazes que estavam com Marilton. Bituca tremeu de medo. Papai fechou a porta atrás de si:
Será que ele está bravo? — Bituca olhou inquieto para Marilton.
Claro que não. Vamos ensaiar.
Meu irmão não percebia e nem tinha por que perceber o medo de Bituca.
Dali a cinco minutos papai voltou com dois pratos de mexido. Ofereceu o primeiro a Bituca, o outro a Wagner.
Ensaiar de barriga cheia é melhor não é não? — e saiu do quarto.
Depois voltou com mais dois pratos para Marilton e Marcelo Ferrari.
Logo depois ouvi Bituca comentar com Marilton:
Nunca vi um troço tão bem recebido como esse prato de mexido. Eu já estava cagando de medo.
Márcio Borges, in Os sonhos não envelhecem

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