segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

As sirenes tocavam a noite inteira sem parar

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Mefítico. O fedor vem dos cadáveres, do lixo e dos excrementos que se amontoam além dos Círculos Oficiais Permitidos, para lá dos Acampamentos Paupérrimos. Que não me ouçam designar tais regiões pelos apelidos populares. Mal sei o que me pode acontecer. Isolamento, acho.
Tentaram tudo para eliminar esse cheiro de morte e decomposição que nos agonia continuamente. Será que tentaram? Nada conseguiram. Os caminhões, alegremente pintados de amarelo e verde, despejam mortos, noite e dia. Sabemos, porque tais coisas sempre se sabem. É assim.
Não há tempo para cremar todos os corpos. Empilham e esperam. Os esgotos se abrem ao ar livre, descarregam, em vagonetes, na vala seca do rio. O lixo forma setenta e sete colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, violento demais, corrói e apodrece a carne em poucas horas.
O cheiro infeto dos mortos se mistura ao dos inseticidas impotentes e aos formóis. Acre, faz o nariz sangrar em tardes de inversão atmosférica. Atravessa as máscaras obrigatórias, resseca a boca, os olhos lacrimejam, racha a pele. Ao nível do chão, os animais morrem.
Forma-se uma atmosfera pestilencial que uma bateria de ventiladores possantes procura inutilmente expulsar. Para longe dos limites dos oikoumenê, palavra que os sociólogos, ociosos, recuperam da antiguidade, a fim de designar o espaço exíguo em que vivemos. Vivemos?
Virei-me assustado. Adelaide nunca tinha dado um grito em trinta e dois anos de casados. Treze para as oito. Em quatro minutos deveria estar no ponto, ou perderia o S-7.58, minha condução autorizada. Estranho, ela sabia. E por que então resolvia me atrasar ainda mais?
O que foi?
O paletó! Esqueceu?
Não aguento esse paletó. Passo o dia suando.
Mas sem ele não te deixam trabalhar.
Tomara.
Adelaide me olhou, arisca. Inquieto, encarei o rosto dela e me perguntei. Pergunta que não tenho coragem de enfrentar. Se eu admitir, ela se desvenda. Toma forma, cristaliza, revela. Será que depois de tantos anos compensa ver? Reagir agora? E se valesse a pena?
Tomávamos o café da manhã juntos, todos os dias. Depois ela me acompanhava até a porta. Eu colocava o chapéu (voltou o seu uso), acariciava seu ombro esquerdo (nem sei mais se há prazer nisto) e consultava o relógio. Ficava angustiado se não estivesse dentro do horário.
Olha a neblina, está baixa. Vai esquentar muito.
Cada dia, a neblina desce. Quando envolver tudo, vamos suportar? Seis meses atrás, pairava no espaço como a cúpula de uma catedral gigantesca. O mormaço rescalda a cidade, inflama a gente. Às vezes, a neblina some, fica o fedor que dá ânsias de vômito. A cabeça arde.
Conseguiu dormir?
Com as sirenes tocando a noite inteira?
Era alarme de roubo?
Incêndio. Me deixa com os nervos estourados. A falta de sono até aguento. Mas os alarmes me perturbam.
Não chega o calor infernal durante o dia? Ainda tem incêndio à noite?
Está tudo ressecado.
Lembra-se daquele tempo em que os galões de gasolina estouravam? Os prédios ardiam sem parar? Havia um depósito em cada casa, logo depois do nefasto período de Racionamentos Incríveis.
Trouxe o paletó cinza. Tecido sintético que impermeabiliza. Não deixa passar calor, anunciaram. Nada. Igual à casimira. Me abafa. Vi sobre a mesa os calendários sendo empilhados, ela estava retirando das paredes. Puxa! Hoje deve ser 5 de janeiro. O que me interessa?
Os calendários desta casa permanecem sempre no primeiro do ano. O 1 vermelho, fraternidade universal. O vermelho desbota, torna-se rosado ao fim do ano. Todos os dias, Adelaide limpa. Horas e horas tirando o pó das folhinhas, na sala, cozinha, quarto. Ansiosamente.
O 1 eterno. Não é preciso marcar o tempo, basta abandoná-lo, ela me disse uma vez. De que adianta saber que dia é hoje? As horas, sim, são importantes. O dia é bem dividido. Cada hora uma coisa certa. Melhor viver um dia só, sem fim. O que tiver de acontecer, é dentro dele.
Agora me dou conta. Não parecia coisa dela. Mulher quieta, ex-escriturária de estrada de ferro. Nunca falava. Aceitava as coisas e só mostrava irritação calando-se e coçando em baixo dos olhos. O lugar coçado tornava-se enrugado e os olhos alongavam-se, como os de uma japonesa.
No começo do ano, recolhia os calendários, fazia um pacote com papel-pardo. No dia 5, ao sair, pedia: “Não se esqueça do papel”. Repetiu, trinta e dois anos. Nunca me lembrava, ela jamais se esquecia. Dizia a frase, irremediavelmente, ao nos despedirmos, treze para as oito.
A substituição dos calendários era automática no dia 5 de janeiro. Pela manhã, Adelaide retirava-os. Nesse dia, eu não ficava na cidade, voltava na hora do almoço. Depois de comer, sempre me deitava um pouco. Mas, agora, o quarto abafado e o suor não me deixam dormir.
Mesmo assim, fico no quarto. Ao sair, vejo os novos calendários no lugar. E, sobre a mesa, o embrulho de papel-pardo. Devo levá-lo ao antigo quarto de empregada, amontoá-lo junto com os outros. Ali estão empilhadas pela ordem as folhinhas dos últimos trinta e dois anos.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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