Um
dos mistérios da vida é: de onde vêm as anedotas? O enigma da
criação da anedota se compara ao enigma da criação da matéria.
Em todas as teorias conhecidas sobre a evolução do universo sempre
se chega a um ponto em que a única explicação possível é a da
geração espontânea. Do nada surge alguma coisa. As anedotas também
nasceriam assim, já prontas, aparentemente autogeradas. Você não
conhece ninguém que tenha inventado uma anedota. Ou, pelo menos, uma
boa anedota. Os que contam uma anedota sempre a ouviram de outro, que
ouviu de outro, que ouviu de outro, que não se lembra onde a ouviu.
Se anedota fosse crime, sua repressão seria dificílima. Prenderiam
os viciados e os traficantes, a arraia-miúda, mas jamais chegariam
ao capo, ao distribuidor, ao verdadeiro culpado.
-
Prendemos o Joca (“Sabem a última?”) da Silva. Ele estava
passando uma anedota e...
-
Imbecis! Não era para prender.
-
Mas, delegado. Ele estava de posse de dezenas de anedotas de primeira
qualidade. Algumas novíssimas...
-
Era para segui-lo e descobrir seu fornecedor. Mais uma pista
perdida...
Os
humoristas profissionais não fazem anedotas. Inventam piadas,
frases, cenas, histórias, mas as anedotas que correm o país não
são deles. São de autores desconhecidos mas nem por isto menos
competentes. Uma anedota geralmente tem o rigor formal de um teorema.
Exposição, desenvolvimento, desenlace. Claro que variam de acordo
com quem conta. Grande parte do sucesso de uma anedota depende do
estilo de quem conta. A anedota é uma continuação da tradição
homérica, de narrativa oral, que transmitia histórias antes do
livro. Anedota impressa deixa de ser anedota. Existem contadores
eméritos. E casos pungentes de grandes contadores que, com o tempo,
vão perdendo a habilidade, até chegarem ao supremo vexame de, um
dia, esquecerem o fim da anedota.
-
Aí o anãozinho pega o desentupidor de pia e...
-
Sim?
-
E... e... Como é mesmo? Já me vem...
-
Não!
Pior
do que isto é o contrário. O contador decadente que passa a só se
lembrar do fim das anedotas.
-
Como é mesmo aquela? Termina com o homem dizendo pro índio “fica
com o escalpo mas me devolve a peruca”. Puxa...
Há
quem diga que todas as anedotas são variações sobre dez situações
básicas, que existem há séculos. Deus, depois de dar a Moisés a
tábua com os Dez Mandamentos, o teria chamado de volta e dito:
-
E esta e a das anedotas...
Seja
como for, a anedota é a grande manifestação da inventividade
popular, da inteligência clandestina que mantém vivo o espírito
crítico, mesmo quando tentam reprimi-lo.
Quem
quiser saber o que pensavam os brasileiros dos seus líderes desde o
primeiro Pedro deve procurar nas anedotas, não na história oficial.
Contam que na Rússia, certa vez, Stalin decidiu formar um ministério
da anedota, para substituir as anedotas que o povo andava espalhando
por sua conta.
Vários
ministros tentaram mas não conseguiram produzir anedotas que
agradassem ao povo, e foram mandados para a Sibéria. Até que um
ministro acertou e fez uma série de anedotas, todas contra Stalin,
que tiveram grande aceitação popular. O ministro foi condecorado e
escapou de ser mandado para a Sibéria por ter fracassado. Foi
mandado para a Sibéria por fazer anedotas sobre o Stalin. E o
ministério acabou logo, por falta de pessoal capacitado.
Dizem
que, eventualmente, um computador bem programado poderá escrever
teses e romances. Mas duvido que algum computador, algum dia, possa
fazer uma anedota. As instruções seriam claras. Local: uma cela de
prisão no Brasil. Personagens: os responsáveis pelos escândalos
das privatizações, do Sivam, do Proer, do Daer e da Caixa Dois
reunidos. Tarefa: criar uma história curta, com final surpreendente,
que faça rir. O computador provavelmente responderia:
-
Tarefa impossível. Situação improvável.
Luís
Fernando Veríssimo, in
Comédias para se ler na escola
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