A
política nacional era um romance que os meninos barbados folheavam,
largavam, retomavam, deturpavam. Versáteis, não permaneciam nessas
alturas, caíam nos sucessos vulgares, que eram também contos de
fadas.
O
Doutor Juiz de Direito mencionava a comarca onde servira, no
Amazonas. Jacarés monstruosos, onças inofensivas, cobras que
engoliam bois.
Seu
André Cursino, gordinho, baixinho, barrigudo, saía à rua vestido
em robe-de-chambre.
Seu
Batista, embutido na camisa dura, enforcado na gravata preta, a barba
em bico alongando-lhe a cara magra, falava devagar. Quando se calava,
as cabeças em redor balançavam-se aprovando-o, e os olhos
maliciosos troçavam dele.
Seu
Filipe Benício, encorpado, tinha rugas é bigode grisalho. Sério,
causava medo. Na conversa a gravidade esmorecia.
Tipo
mofino era o velho Quinca Epifânio, ossudo, inquieto, cara de fome,
sovina até nas palavras. Guardava a despensa na loja: barricas bem
cobertas, defendidas contra os ratos. De manhã um moleque se chegava
ao balcão, a cesta pendurada no braço. O avarento destapava os
esconderijos, pesava e media longamente a ração miserável:
duzentas gramas de charque, dois dedos de toicinho, um pires de
feijão. Privava-se disso e despedia o portador, gaguejando.
Para
lá da lagoa, no alto de um monte, Seu Félix Cursino recebia visitas
no alpendre de uma casa rodeada de cajueiros.
Abaixo
dessa classe andavam criaturas que não liam jornais, ignoravam D.
Pedro II e o Barão de Ladário.
André
Laerte, barbeiro muito sujo, usava um avental ensanguentado, pisava
macio, com modos de gato.
As
gargalhadas do pedreiro Carcará feriam todos os ouvidos.
Seu
Acrísio, jogador e quase cego, ziguezagueava, batia nas paredes,
tenteava degraus e portas com o cajado. No jogo, unia as cartas aos
óculos, apalpava-as lentamente, como se as visse com os dedos.
Mestre Firmo alfaiate, a agulha metida na gola, pedia um cigarro. Se
não o obtinha, entrava na bodega e comprava um maço. Tirava o
cigarro necessário e, distribuía dezenove, porque lhe faltava o
instinto de proprietário, moderava-se no vício e devia a toda a
gente.
Alguns
indivíduos, quando não se apresentavam nas calçadas, incorriam em
censuras rigorosas. Seu Antônio Justino e Seu Afro estavam entre
eles, o primeiro por ser indolente, o segundo por acomodar-se a uma
vida irregular.
Dificilmente
se provaria que Seu Antônio Justino fosse mais preguiçoso que os
outros habitantes da vila, mas todos o condenavam: não tinha fazenda
nem ofício, não jogava e nas reuniões das esquinas opinava
medianamente.
Seu
Afro, vítima de uma infelicidade que só muito mais tarde
compreendi, não se julgava infeliz, aparentava não julgar-se
infeliz: era um rapagão corado, forte, risonho. Vendo-o pelas
costas, as pessoas que discutiam Canudos e o Barão de Ladário
faziam caretas de repugnância, largavam frases contundentes ou
gestos obscenos. Porque Seu Afro, casado no religioso, morava no
Cavalo-Morto, zona imprópria, com a mulher, grande loura sardenta, e
um compadre.
Esse
amigo tinha residência nominal na fazenda, mas de fato vivia na rua
e no pecado, entregue de corpo e alma à família adotiva — uma
dedicação que o tempo e os remoques não esfriavam nem corrompiam.
Os três achavam no seu pequenino mundo substância para manter a
sociabilidade que havia neles.
Dispensavam
festas, visitas, palestras. E D. Maroca, vistosa, branca de carnes e
de roupa, bem lavada e bem esfregada, caminhava firme nos passeios,
sem se voltar para as janelas, isenta de cortesias. As mulheres
honestas se desviavam dela, rancorosas. E as desonestas, caiadas,
pintadas, enxeriam-se:
— Hum!
hum! Maroca passa, nem olha.
Diziam
na verdade nem uia. Creio que diziam nenhuia, coisa
estranha. D. Maroca não olhava. Seguia o seu caminho, aprumada — e
só.
Espantaram-me
a desconsideração e a frieza que envolviam essas criaturas. Não me
capacitava de que a moça bonita, cheirosa, engomada, fosse de
qualquer maneira inferior a D. Águeda de Seu Acrísio, magra e
pontuda.
Também
me parecia injusto dar ao velho Quinca Epifânio, engelhado e
faminto, mais valor que a Seu Afro, robusto e alegre. O juízo dos
homens era esquisito.
Bem
esquisito.
Contudo
esse julgamento absurdo acompanhou-me. Fixou-se, ganhou raízes.
Indigno-me, quero extirpá-lo, reabilitar Seu Afro e D. Maroca. Duas
pessoas normais. Penso assim. E desprezo-as, sinto-as decaídas.
Impossível deixar de senti-las decaídas. Repito mentalmente os
desconchavos de Padre João Inácio.
Graciliano
Ramos, in Infância
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