sábado, 10 de dezembro de 2016

Pode acontecer

Pode acontecer o seguinte. As revelações sobre o envolvimento de figuras do governo passado em crimes e escândalos chegam a ponto crítico. Civis e militares de graduação inimaginável vêem-se na iminência não de ir para a cadeia, o que contraria os hábitos brasileiros, mas de serem expostos como corruptos, torturadores, etc. O que, sei lá, seria chato. Os protestos contra "revanchismo" não adiantam. É preciso agir para deter a torrente de denúncias que ameaça destruir, na sua fúria persecutória, tudo o que o regime passado deixou de bom. Como, por exemplo, o, a... hm. Bem, é preciso agir.
O golpe é decidido num telefonema no meio da noite. Falam em código.
- Alô, Mão em Cumbuca? Boca na Botija.
- Fala, Boca.
- Tudo certo para amanhã?
- Tudo.
- Tem certeza?
- Tenho. Houve resistência, mas o argumento de que até o Antônio Carlos está nas mãos dos comunistas foi decisivo. A maioria aderiu.
- Quer dizer que...
- Lá vamos nós outra vez.
- Será que não há mesmo outro jeito?
- Bem, se você quer ver nos jornais a história de como você roubava material do seu gabinete para vender...
- Ssssh!
- Nunca entendi. Você não se contentava com seu salário de...
- Sssshh!
- Tinha que vender os clipes de papel?!
- E você? E você?
- O que que tem eu?
- E o cabaré no porão do
- Ssshhh!
- Bom, agora não adianta ficar lamentando. O importante é que ninguém descubra. Como está o plano?
- Não pode falhar. Cercaremos o Congresso. Os congressistas se renderão. Usando os congressistas como reféns, exigiremos a capitulação do governo e das forças leais a Sarney.
- Uma vez no poder, censuraremos a imprensa. De novo.
- Exato.
- Boa sorte, Mão!
- Certo, Boca.
No dia seguinte.
- Alô, Mão em Cumbuca?
- Não tem ninguém aqui com esse codinome.
- Já vi que não deu certo...
- É.
- O que houve?
- Atacamos o Congresso. Fomos direto ao cerne da democracia. Cercamos o prédio. Entramos para render os congressistas.
- E?
- E não encontramos ninguém!
- O quê?!
- Bom, para não dizer que não tinha ninguém, tinha uma taquígrafa. Pensamos em usá-la como refém mas acabamos desistindo.
- Assim não dá!
- É. É impossível golpear as instituições se elas não estão onde deviam estar!
- O que vamos fazer agora, Mão?
- Eu se fosse você dava o fora do país, Boca.
- E de onde você pensa que eu estou falando, Mão?
Luís Fernando Veríssimo, in Comédias para se ler na escola

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