As poças d’água na calçada
esburacada — não, isto não é um protesto: é, a seu modo, uma
espécie de poema, que por sinal já saiu rimando... Fosse uma
reclamação, eu a publicaria no “Correio do Leitor”, seção
competente onde cada um exerce o direito da sua opinião privada
sobre a coisa pública. As poças d’água na calçada, como eu ia
dizendo, são, em meio ao tráfego congesto, o único esporte que
resta ao viandante na contingência de lhes saltar por cima ou
devidamente contorná-las. Há velhinhas — quem diria? — que
sabem transpô-las com infinita graça, equilibrando no alto a
sombrinha como a moça do arame no circo. Há graves senhores
pançudos que o fazem cuidadosamente, eficientemente, com uma
perfeição que justifica o seu status. E há também os sujeitos,
nada pançudos, nada graves, antes pelo contrário, e que nos fazem
lembrar os chamados “saltapocinhas” do Segundo Império. Quanto
às crianças, estas adoram as poças d’água... Nem é necessário
alegar, a seu respeito, uma compulsiva comunhão com a natureza.
Comunhão com a natureza tive-a eu,
quando uma noite caí de borco ao praticar esse esporte e fui parar
no pronto-socorro, de nariz quebrado. A moça otorrino que
gentilmente me atendeu mostrou-se preocupada com o meu vômer, que eu
não sabia o que era. Explicou-me que se tratava do osso que dividia
as fossas nasais. Quanto aos outros, os da ponta do nariz, eram os
ditais e, se fossem os vitimados, não tinha importância, pois
acabariam acomodando-se por si mesmos.
Como vês, leitor amigo, a vida é assim:
caindo e aprendendo... E, caso me ocorram outros acidentes, acabarei
enfim sabendo anatomia, matéria que faz muito tempo que não estudei
nos bancos escolares.
Mas o que me deixou mesmo mais eufórico
foi ao ler no boletim clínico que toda aquela sangueira nas ventas
tinha o nome de epistaxe. Epistaxe, meu Deus! Até parece uma figura
de retórica...
As poças d’água são um mundo mágico
Um céu quebrado no chão
Onde em vez das tristes estrelas
Brilham os letreiros de gás néon.
Mário Quintana, in A vaca e o
hipogrifo
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