Assim, o Menino, entre dia, no acabrunho,
pelejava com o que não queria querer em si. Não suportava atentar,
a cru, nas coisas, como são, e como sempre vão ficando: mais
pesadas, mais-coisas — quando olhadas sem precauções. Temia pedir
notícias; temia a Mãe na má miragem da doença? Ainda que
relutasse, não podia pensar para trás. Se queria atinar com a Mãe
doente, mal, não conseguia ligar o pensamento, tudo na cabeça da
gente dava num borrão. A Mãe da gente era a Mãe da gente, só;
mais nada.
Mas, esperava; pelo belo. Havia o tucano
— sem jaça — em voo e pouso e voo. De novo, de manhã, se
endereçando só àquela árvore de copa alta, de espécie chamada
mesmo tucaneira. E dando-se o raiar do dia, seu fôlego dourado. Cada
madrugada, à horinha, o tucano, gentil, rumoroso:
...chégochégochégo... — em voo direto, jazido, rente,
traçado macio no ar, que nem um naviozinho vermelho sacudindo
devagar as velas, puxado; tão certo na plana como se fosse um
marrequinho deslizando para a frente, por sobre a luz de dourada
água.
Depois do encanto, a gente entrava no
vulgar inteiro do dia. O dos outros, não da gente. As sacudidelas do
jeep formavam o acontecer mais seguido. A Mãe sempre
recomendara zelo com as roupinhas; mas a terra aqui era à desafiada.
Ah, o bonequinho macaquinho, mesmo sempre no bolso, se sujava mais de
suor e poeira. Os mil e mil homens muitamente trabalhavam fazendo a
grande cidade.
Mas o tucano, sem falta, tinha sua
soência de sobrevir, todos ali o conheciam, no pintar da aurora.
Fazia mais de mês que isso principiara. Primeiro, aparecera por lá
uma bandada de uns trinta deles, vozeantes, mas sendo de-dia, entre
dez e onze horas. Só aquele ficara, porém, para cada amanhecer. Com
os olhos tardos tontos de sono, o bonequinho macaquinho em bolso, o
Menino apressuradamente se levantava e descia ao alpendre, animoso de
amar.
O Tio lhe falava, com excessivos de
agrado, sem o jeito nenhum. Saíam — sobre o se-fazer das coisas.
Tudo a poeira tapava. O bonequinho macaquinho, um dia, devia de poder
ganhar algum outro chapeuzinho, de alta pluma; mas verde, da cor da
gravata, tão sobressaída, com que o Tio, de camisa, agora não
estava. O Menino, em cada instante, era como se fosse só uma certa
parte dele mesmo, empurrado para diante, sem querer. O jeep corria
por estradas de não parar, sempre novas. Mas o Menino, em seu mais
forte coração, declarava, só: que a Mãe tinha de ficar boa, tinha
de ficar salva!
Esperava o tucano, que chegava, a-justo,
a-tempo, a-ponto, às seis-e-vinte da manhã; ficava, de arvoragem,
na copa da tucaneira, futricando as frutas, só os dez minutos,
comidos e estrepulados. Daí, partia, sempre naquele outro-rumo, no
antes do pingado meio-instante em que o sol arrebolava redondo do
chão; porque o sol era às seis-e-meia. O Tio media tudo no relógio.
De dia, não voltava lá. Se donde vinha
e morava — das sombras do mato, os impenetráveis? Ninguém
soubesse seus usos verdadeiros, nem os certos horários: os demais
lugares, aonde iria achar comer e beber, sobre os pontos isolados.
Mas o Menino pensava que devia acontecer mesmo assim — que ninguém
soubesse. Ele vinha do diferente, só donde. O dia: o pássaro.
Entremeio, o Tio, recebido um telegrama,
não podia deixar de mostrar a cara apreensiva — o envelhecimento
da esperança. Mas, então, fosse o que fosse, o Menino, calado
consigo, teimoso de só amor, precisava de se repetir: que a Mãe
estava sã e boa, a Mãe estava salva!
De repente, ouviu que, para consolá-lo,
combinavam maneira de pegar o tucano: com alçapão, pedrada no bico,
tiro de espingardinha na asa. Não e não! — zangou-se, aflito. O
que cuidava, que queria, não podendo ser aquele tucano, preso. Mas a
fina primeira luz da manhã, com, dentro dela, o voo exato.
O hiato — o que ele já era capaz de
entender com o coração. Ao outro dia seguinte. Aí, quando o
pássaro, seu raiar, cada vez, era um brinquedo de graça. Assim como
o sol: daquela partezinha escura no horizonte, logo fraturada em
fulgor e feito a casca de um ovo — ao termo da achãada e obscura
imensidão do campo, por onde o olhar da gente avançava como no
estender um braço.
O Tio, entanto, diante dele, parou sem a
qualquer palavra. O Menino não quis entender nenhum perigo. Dentro
do que era, disse, redisse: que a Mãe nem nunca tinha estado doente,
nascera sempre sã e salva! O voo do pássaro habitava-o mais. O
bonequinho macaquinho quase caíra e se perdera: já estando com a
carinha bicuda e meio corpo saídos do bolso, bisbilhotados! O Menino
não lhe passara pito. A tornada do pássaro era emoção enviada,
impressão sensível, um transbordamento do coração. O Menino o
guardava, no fugidir, de memória, em feliz voo, no ar sonoro, até à
tarde. O de que podia se servir para consolar-se com, e
desdolorir-se, por escapar do aperto de rigor — daqueles dias
quadriculados.
Ao quarto dia, chegou um telegrama. O Tio
sorriu, fortíssimo. A Mãe estava bem, sarada! No seguinte —
depois do derradeiro sol do tucano — voltariam para casa.
Guimarães Rosa, in Primeiras
estórias
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