Na
casa, que não mudara, entre e adiante das árvores, todos começaram
a tratá-lo com qualidade de cuidado. Diziam que era pena não haver
ali outros meninos. Sim, daria a eles os brinquedos; não queria
brincar, mais nunca. Enquanto a gente brincava, descuidoso, as coisas
ruins já estavam armando a assanhação de acontecer: elas esperavam
a gente atrás das portas.
Também
não dava vontade sair de jeep, com o Tio, se para a poeira,
gente e terra. Segurava-se forte, fechados os olhos; o Tio disse que
ele não devia se agarrar com tão tesa força, mas deixar o corpo no
ir e vir dos solavancos do carro. Se adoecesse, grave, também, que
fosse — como ia ficar, mais longe da Mãe, ou mais perto? Ele
mordeu seu coração. Nem quis falar com o macaquinho bonequinho. O
dia, inteiro, servia era para se fazer o espalhamento no cansaço.
Mesmo
assim, à noite, não começava a dormir. O ar daquele lugar era
friinho, mais fino. Deitado, o Menino se sentia sustoso, o coração
dando muita pancada. A Mãe, isto é... E não podia logo dormir, e
pela dita causa. O calado, o escuro, a casa, a noite — tudo
caminhava devagar, para o outro dia. Ainda que a gente quisesse, nada
podia parar, nem voltar para trás, para o que a gente já sabia, e
de que gostava. Ele estava sozinho no quarto. Mas o bonequinho
macaquinho não era mais o para a mesa de cabeceira: era o camarada,
no travesseiro, de barriguinha para cima, pernas estendidas. O quarto
do Tio ficava ao lado, a parede estreita, de madeira. O Tio
ressonava. O macaquinho, quase também, feito um muito velho menino.
Alguma coisa da noite a gente estivesse furtando?
E,
vindo o outro dia, no não-estar-mais-dormindo e
não-estar-ainda-acordado, o Menino recebia uma claridade de juízo —
feito um assopro — doce, solta. Quase como assistir às certezas
lembradas por um outro; era que nem uma espécie de cinema de
desconhecidos pensamentos; feito ele estivesse podendo copiar no
espírito ideias de gente muito grande. Tanto, que, por aí,
desapareciam, esfiapadas.
Mas,
naquele raiar, ele sabia e achava: que a gente nunca podia apreciar,
direito, mesmo, as coisas bonitas ou boas, que aconteciam. Às vezes,
porque sobrevinham depressa e inesperadamente, a gente nem estando
arrumado. Ou esperadas, e então não tinham gosto de tão boas, eram
só um arremedado grosseiro. Ou porque as outras coisas, as ruins,
prosseguiam também, de lado e do outro, não deixando limpo lugar.
Ou porque faltavam ainda outras coisas, acontecidas em diferentes
ocasiões, mas que careciam de formar junto com aquelas, para o
completo. Ou porque, mesmo enquanto estavam acontecendo, a gente
sabia que elas já estavam caminhando, para se acabar, roídas pelas
horas, desmanchadas... O Menino não podia ficar mais na cama. Estava
já levantado e vestido, pegava o macaquinho e o enfiava no bolso,
estava com fome.
O
alpendre era um passadiço, entre o terreirinho mais a mata e o
extenso outro-lado — aquele escuro campo, sob rasgos, neblinas,
feito um gelo, e os perolins do orvalho: a ir até a fim de vista, à
linha do céu de este, na extrema do horizonte. O sol ainda não
viera. Mas a claridade. Os cimos das árvores se douravam. As altas
árvores depois do terreiro, ainda mais verdes, do que o orvalho
lavara. Entremanhã — e de tudo um perfume, e passarinhos piando.
Da cozinha, traziam café.
E:
— “Pst!” — apontou-se. A uma das árvores, chegara um
tucano, em brando batido horizontal. Tão perto! O alto azul, as
frondes, o alumiado amarelo em volta e os tantos meigos vermelhos do
pássaro — depois de seu vôo. Seria de ver-se: grande, de
enfeites, o bico semelhando flor de parasita. Saltava de ramo em
ramo, comia da árvore carregada. Toda a luz era dele, que
borrifava-a de seus coloridos, em momentos pulando no meio do ar,
estapafrouxo, suspenso esplendentemente. No topo da árvore, nas
frutinhas, tuco, tuco... daí limpava o bico no galho. E, de olhos
arregaçados, o Menino, sem nem poder segurar para si o embrevecido
instante, só nos silêncios de um-dois-três. No ninguém falar. Até
o Tio. O Tio, também, estava de fazer gosto por aquilo: limpava os
óculos. O tucano parava, ouvindo outros pássaros — quem sabe,
seus filhotes — da banda da mata. O grande bico para cima,
desferia, por sua vez, às uma ou duas, aquele grito meio ferrugento
dos tucanos: — “Crrée!”... O Menino estando nos começos
de chorar. Enquanto isso, cantavam os galos. O Menino se lembrava sem
lembrança nenhuma. Molhou todas as pestanas.
E
o tucano, o voo, reto, lento — como se voou embora, xô, xô! —
mirável, cores pairantes, no garridir; fez sonho. Mas a gente nem
podendo esfriar de ver. Já para o outro imenso lado apontavam. De
lá, o sol queria sair, na região da estrela-d’alva. A beira do
campo, escura, como um muro baixo, quebrava-se, num ponto, dourado
rombo, de bordas estilhaçadas. Por ali, se balançou para cima,
suave, aos ligeiros vagarinhos, o meio-sol, o disco, o liso, o sol, a
luz por tudo. Agora, era a bola de ouro a se equilibrar no azul de um
fio. O Tio olhava no relógio. Tanto tempo que isso, o Menino nem
exclamava. Apanhava com o olhar cada sílaba do horizonte.
Mas
não pudera combinar com o vertiginoso instante a presença de
lembrança da Mãe — sã, ah, sem nenhuma doença, conforme só em
alegria ela ali teria de estar. E nem a ligeireza de ideia de tirar
do bolso o companheiro bonequinho macaquinho, para que ele visse
também: o tucano — o senhorzinho vermelho, batendo mãos, à
frente o bico empinado. Mas feito se, a cada parte e pedacinho de seu
voo, ele ficasse parado, no trecho e impossivelzinho do ponto, nem no
ar — por agora, sem fim e sempre.
Guimarães
Rosa, in Primeiras estórias
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