Outra
era a vez. De sorte que de novo o Menino viajava para o lugar onde as
muitas mil pessoas faziam a grande cidade. Vinha, porém, só com o
Tio, e era uma íngreme partida. Entrara aturdido no avião, a esmo
tropeçante, enrolava-o de por dentro um estufo como cansaço; fingia
apenas que sorria, quando lhe falavam. Sabia que a Mãe estava
doente. Por isso o mandavam para fora, decerto por demorados dias,
decerto porque era preciso. Por isso tinham querido que trouxesse os
brinquedos, a Tia entregando-lhe ainda em mão o preferido, que era o
de dar sorte: um bonequinho macaquinho, de calças pardas e chapéu
vermelho, alta pluma. O qual, o prévio lugar dele sendo na mesinha,
em seu quarto. Pudesse se mexer e viver de gente, e havia de ser o
mais impagável e arteiro deste mundo. O Menino cobrava maior medo, à
medida que os outros mais bondosos para com ele se mostravam. Se o
Tio, gracejando, animava-o a espiar na janelinha ou escolher as
revistas, sabia que o Tio não estava de todo sincero. Outros sustos
levava. Se encarasse pensamento na lembrança da Mãe, iria chorar. A
Mãe e o sofrimento não cabiam de uma vez no espaço de instante,
formavam avesso — do horrível do impossível. Nem ele isso
entendia, tudo se transtornando então em sua cabecinha. Era assim:
alguma coisa, maior que todas, podia, ia acontecer?
Nem
valia espiar, correndo em direções contrárias, as nuvens
superpostas, de longe ir. Também, todos, até o piloto, não eram
tristes, em seus modos, só de mentira no normal alegrados? O Tio,
com uma gravata verde, nela estava limpando os óculos, decerto não
havia de ter posto a gravata tão bonita, se à Mãe o perigo
ameaçasse. Mas o Menino concebia um remorso, de ter no bolso o
bonequinho macaquinho, engraçado e sem mudar, só de brinquedo, e
com a alta pluma no chapeuzinho encarnado. Devia jogar fora? Não, o
macaquinho de calças pardas se dava de também miúdo companheiro,
de não merecer maltratos. Desprendeu somente o chapeuzinho com a
pluma, este, sim, jogou, agora não havia mais. E o Menino estava
muito dentro dele mesmo, em algum cantinho de si. Estava muito para
trás. Ele, o pobrezinho sentado.
O
quanto queria dormir. A gente devia poder parar de estar tão
acordado, quando precisasse, e adormecer seguro, salvo. Mas não dava
conta. Tinha de tornar a abrir demais os olhos, às nuvens que
ensaiam esculturas efêmeras. O Tio olhava no relógio. Então,
quando chegavam? Tudo era, todo-o-tempo, mais ou menos igual, as
coisas ou outras. A gente, não. A vida não parava nunca, para a
gente poder viver direito, concertado? Até o macaquinho sem chapéu
iria conhecer do mesmo jeito o tamanho daquelas árvores, da mata,
pegadas ao terreiro da casa. O pobre do macaquinho, tão pequeno,
sozinho, tão sem mãe; pegava nele, no bolso, parecia que o
macaquinho agradecia, e, lá dentro, no escuro, chorava.
Mas,
a Mãe, sendo só a alegria de momentos. Soubesse que um dia a Mãe
tinha de adoecer, então teria ficado sempre junto dela, espiando
para ela, com força, sabendo muito que estava e que espiava com
tanta força, ah. Nem teria brincado, nunca, nem outra coisa nenhuma,
senão ficar perto, de não se separar nem para um fôlego, sem
carecer de que acontecesse o nada. Do jeito feito agora, no coração
do pensamento. Como sentia: com ela, mais do que se estivessem
juntos, mesmo, de verdade.
O
avião não cessava de atravessar a claridade enorme, ele voava o vôo
— que parecia estar parado. Mas no ar passavam peixes negros,
decerto para lá daquelas nuvens: lombos e garras. O Menino sofria
sofreado. O avião então estivesse parado voando — e voltando para
trás, mais, e ele junto com a Mãe, do modo que nem soubera, antes,
que o assim era possível.
Guimarães
Rosa, in Primeiras estórias
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