Meu
Deus, como o mundo sempre foi vasto e como eu vou morrer um dia. E
até morrer vou viver apenas momentos? Não, dai-me mais do que
momentos. Não porque momentos sejam poucos, mas porque momentos
raros matam de amor pela raridade. Será que eu vos amo, momentos?
Responde, a vida que me mata aos poucos: eu vos amo, momentos? Sim?
Ou não? Quero que os outros compreendam o que jamais entenderei.
Quero que me deem isto: não a explicação, mas a compreensão. Será
que vou ter que viver a vida inteira à espera de que o domingo
passe? E ela, a faxineira, que mora na Raiz da Serra e acorda às
quatro da madrugada para começar o trabalho da manhã na Zona Sul,
de onde volta para a Raiz da Serra, a tempo de dormir para acordar às
quatro da manhã e começar o trabalho na Zona Sul, de onde. – Eu
vou te dar o meu segredo mortal: viver não é uma arte. Mentiram os
que disseram isso. Ah! existem feriados em que tudo se torna tão
perigoso. Mas a máquina corre antes que meus dedos corram. A máquina
escreve em mim. E eu não tenho segredos, senão exatamente os
mortais. Apenas aqueles que me bastam para me fazer ser uma criatura
com os meus olhos e um dia morrer. Que direi disso que agora me
ocorreu? Pois ocorreu-me que tudo se paga – e que se paga tão caro
a vida que até se morre. Passear pelos campos com uma
criancinha-fantasma é estar de mãos dadas com o que se perdeu, e os
campos ilimitados com sua beleza não ajudam: as mãos se prendem
como garras que não querem se perder. Adiantaria matar a
criancinha-fantasma e ficar livre? Mas o que fariam os grandes campos
onde não se teve a previdência de plantar nenhuma flor senão a de
um fantasminha cruel? Cruel por ser criancinha e exigente. Ah! sou
realista demais: só ando com os meus fantasmas.
Clarice
Lispector, in Aprendendo a viver
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