Sinto que já cheguei quase à liberdade.
A ponto de não precisar mais escrever. Se eu pudesse, deixava meu
lugar nesta página em branco: cheio do maior silêncio. E cada um
que olhasse o espaço em branco, o encheria com seus próprios
desejos.
Vamos falar a verdade: isto aqui não é
crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gênero.
Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério. Preciso
ter um ritual para o mistério? Acho que sim. Para me prender à
matemática das coisas. No entanto, já estou de algum modo presa à
terra: sou uma filha da natureza: quero pegar, sentir, tocar, ser. E
tudo isso já faz parte de um todo, de um mistério. Sou uma só.
Antes havia uma diferença entre mim e escrever (ou não havia? não
sei). Agora mais não. Sou um ser. E deixo que você seja. Isso o
assusta? Creio que sim. Mas vale a pena. Mesmo que doa. Dói só no
começo.
Agora vou falar de umas verdades que me
deixam espantada. É sobre bichos. Uma pessoa que conheço disse que
o siri, quando se lhe pega por uma perna, essa se solta para que o
corpo todo não fique aprisionado pela pessoa. E que, no lugar dessa
perna caída, nasce outra.
Outra pessoa que conheço estava
hospedada numa casa e foi abrir a porta da geladeira para beber um
pouco de água.
E viu a coisa.
A coisa era branca, muito branca. E, sem
cabeça, arfava. Como um pulmão. Assim: para baixo, para cima, para
baixo, para cima. A pessoa fechou depressa a geladeira. E ali perto
ficou, de coração batendo.
Depois veio a saber do que se tratava. O
dono da casa era perito em caça submarina. E pescara uma tartaruga.
E lhe tirara o casco. E lhe cortara a cabeça. E pusera a coisa na
geladeira para no dia seguinte cozinhá-la e comê-la.
Mas enquanto não era cozida, ela, sem
cabeça, nua, arfava. Como um fole.
Já falei aqui sobre tartarugas. Escrevi
o seguinte: “Da lenta e empoeirada tartaruga carregando seu pétreo
casco, não quero falar. Esse animal nos vem da Era Terciária,
dinossáurico (quando escrevi dinossáurico não sabia que era mesmo,
estava só adivinhando), não me interessa: é por demais estúpido,
não entra em relação com ninguém, nem consigo próprio. É uma
abstração. O ato de amor de duas tartarugas não deve ter calor nem
vida. Sem ser cientista, aventuro-me a prognosticar que a espécie
vai daqui a poucos milênios acabar.”
Esqueci-me de dizer que acho a tartaruga
inteiramente imoral.
Alguém, adivinhando que era falso o meu
não interesse por tartarugas, emprestou-me um livrinho sobre elas,
em inglês. Eis um trecho traduzido desse livrinho.
“As tartarugas são répteis raros e
antigos. Seus ancestrais apareceram pela primeira vez há uns 200
milhões de anos, muito antes que os dinossauros. Enquanto estes
animais grandes há muito tempo se extinguiram, as tartarugas, com
sua forma estranha e sem beleza, conseguiram sobreviver, e têm
permanecido relativamente imutáveis pelo menos durante 150 milhões
de anos.”
Sem o casco, sem a cabeça, arfando, para
cima, para baixo, para cima, para baixo. Com vida.
Como compreender uma tartaruga? Como
compreender Deus?
O ponto de partida deve ser: “Não
sei.” O que é uma entrega total.
A máquina continua escrevendo. Por
exemplo, ela vai escrever o seguinte: quem atinge um alto nível de
abstração está em fronteira com a loucura. Que os grandes
matemáticos e físicos o digam. Conheço um grande homem abstrato
que faz de conta que é como todo mundo: come, bebe, dorme com a
mulher, tem filhos. Assim ele se salva de se tornar um x ou uma raiz
quadrada. Quando penso que, muito menina ainda, eu dava aulas
particulares explicativas de matemática e português a ginasianos,
mal acredito. Porque hoje seria incapaz de resolver uma raiz
quadrada. Quanto a português, era com o maior tédio que eu dava as
regras de gramática. Depois, felizmente, vim a esquecê-las. É
preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a
respirar livremente.
Agora a máquina vai parar. Até sábado
próximo.
Clarice Lispector, in Aprendendo
a viver
Nenhum comentário:
Postar um comentário