Nunca
tinha ouvido mencionar aquele título ou o seu autor, mas não me
importou. A decisão estava tomada. Por ambas as partes. Peguei no
livro com extremo cuidado e folheei-o, deixando esvoaçar as suas
páginas. Libertado da sua cela na estante, o livro exalou uma nuvem
de pó dourado. Satisfeito com a minha escolha, voltei pelo mesmo
caminho ao longo do labirinto levando o meu livro debaixo do braço
com um sorriso impresso nos lábios. Talvez a atmosfera feiticeira
daquele lugar tivesse levado a melhor sobre mim, mas tive a certeza
de que aquele livro tinha estado ali à minha espera durante anos,
provavelmente desde antes de eu nascer.
Naquela
tarde, de volta ao andar da Rua Santa Ana, refugiei-me no meu quarto
e decidi ler as primeiras linhas do meu novo amigo. Antes que me
apercebesse, tinha caído dentro dele sem remédio. O romance
relatava a história de um homem em busca do seu verdadeiro pai, que
nunca tinha chegado a conhecer e cuja existência só descobriria
graças às últimas palavras que a mãe pronunciava no seu leito de
morte. A história daquela busca transformava-se numa odisseia
fantasmagórica na qual o protagonista lutava por recuperar uma
infância e uma juventude perdidas, e na qual, lentamente,
descobríamos a sombra de um amor maldito cuja lembrança o havia de
perseguir até ao fim dos seus dias. À medida que avançava, a
estrutura do relato começou a lembrar-me uma daquelas bonecas russas
que contêm inumeráveis miniaturas de si mesmas no interior. Passo a
passo, a narração decompunha-se em mil histórias, como se o relato
tivesse penetrado numa galeria de espelhos e a sua identidade se
cindisse em dúzias de reflexos diferentes e ao mesmo tempo um só.
Os minutos e as horas deslizaram como uma miragem. Horas mais tarde,
aprisionado pelo relato, mal dei pelas badaladas da meia-noite na
catedral a repicar ao longe. Enterrado na luz de cobre que o
candeeiro flexível projetava, mergulhei num mundo de imagens e
sensações como nunca as tinha conhecido. Personagens que se me
afiguraram tão reais como o ar que respirava arrastaram-me para um
túnel de aventura e mistério do qual não queria escapar. Página a
página, deixei-me envolver pelo sortilégio da história e pelo seu
mundo até que o sopro do amanhecer acariciou a minha janela e os
meus olhos cansados deslizaram pela última página. Deitei-me na
penumbra azulada do alvorecer com o livro sobre o peito e escutei o
rumor da cidade adormecida a gotejar sobre os telhados salpicados de
púrpura. O sono e a fadiga batiam à minha porta, mas resisti a
render-me. Não queria perder o feitiço da história nem dizer adeus
ainda às suas personagens.
Numa
ocasião ouvi um cliente habitual comentar na livraria do meu pai que
poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que
realmente abre caminho até ao seu coração. Aquelas primeiras
imagens, o eco dessas palavras que julgamos ter deixado para trás,
acompanham-nos toda a vida e esculpem um palácio na nossa memória
ao qual, mais tarde ou mais cedo – não importa quantos livros
leiamos, quantos mundos descubramos, tudo quanto aprendamos ou
esqueçamos -, vamos regressar.
Para
mim aquelas páginas enfeitiçadas serão sempre as que encontrei
entre os corredores do Cemitério dos Livros Esquecidos.
Carlos
Ruiz Zafón, in A sombra do vento
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