Depois
da segunda prece, deixamos a Hospedaria do Marreco Dourado e
seguimos, a passos rápidos, para a residência do vizir Ibrahim
Maluf, ministro do rei.
Ao
entrar na rica morada do nobre muçulmano fiquei, realmente,
encantado.
Cruzamos
pesada porta de ferro e percorremos um corredor estreito, e sempre
guiados por um escravo núbio gigantesco (que trazia algemas de ouro
no punho esquerdo) fomos conduzidos ao soberbo jardim interno do
palácio.
Esse
jardim, construído com fino gosto, era ensombrado por duas filas
paralelas de laranjeiras. Para esse jardim abriam-se várias portas,
algumas das quais deviam servir ao harém do palácio. Duas escravas
kafiras que se achavam, descuidadas, colhendo flores, logo que os
avistaram correram entre os canteiros e desapareceram atrás das
colunas.
Do
jardim, que me pareceu alegre e gracioso, passava-se por uma porta
estreita, aberta em muro bastante alto, para o primeiro pátio da
belíssima vivenda. Digo primeiro porque a residência dispunha de
outro pátio na ala esquerda do edifício.
No
meio desse primeiro pátio, todo coberto de esplêndido mosaico,
relumbrava uma fonte com três repuxos. As três curvas líquidas,
formadas no espaço, rebrilhavam ao sol.
Atravessamos
o pátio e, sempre guiados pelo escravo das algemas de ouro, fomos
levados para o interior do palácio. Cruzamos várias salas ricamente
enfeitadas com tapeçarias bordadas com fios de prata e chegamos,
finalmente, ao aposento em que se achava o prestigioso ministro do
rei.
Fomos
encontrá-lo recostado em grandes almofadas, a palestrar com dois de
seus amigos.
Um
deles (logo reconheci) era o xeque Salém Nasair, nosso companheiro
de aventuras no deserto; o outro era um homem baixo, de rosto
redondo, fisionomia bondosa, a barba ligeiramente grisalha. Trajava
com apurado gosto e ostentava no peito uma medalha de forma
retangular, tendo uma das metades amarela, cor de ouro, e outra
escura como bronze.
O
vizir Maluf recebeu-nos com demonstrações de viva simpatia.
Dirigindo-se ao homem da medalha, disse, risonho:
— Eis
aí, meu caro Iezid, o nosso grande calculista. Este jovem que o
acompanha é um bagdali que o descobriu, por acaso, quando jornadeava
pelos caminhos de Alá.
Dirigimos
respeitoso salã ao nobre xeque. Soubemos, mais tarde, que se tratava
de brilhante poeta — Iezid Abdul-Hamid — amigo e confidente do
califa Al-Motacém. Aquela medalha singular ele a recebera, como
prêmio, das mãos do califa, por ter escrito um poema com trinta mil
e duzentos versos sem empregar uma única vez as letras Kaf,
Iam e ayn.
—
Custa-me acreditar, amigo Maluf —
declarou, em tom risonho, o poeta Iezid —, nas façanhas
prodigiosas levadas a termo por esse calculista persa. Quando os
números se combinam, aparecem, também, os artifícios de cálculo e
as sutilezas algébricas. Ao rei El-Harit, filho de Modad,
apresentou-se certa vez um mago, que afirmava poder ler na areia o
destino dos homens. “O senhor faz cálculos?” — perguntou o
rei. E antes que o mago despertasse do espanto em que se achava, o
monarca ajuntou: “Se não faz cálculo, suas previsões nada valem:
se as obtém pelo cálculo, duvido muito delas.” Aprendi na Índia
um provérbio que diz: “É preciso desconfiar sete vezes do cálculo
e cem vezes do matemático.”
— Para
pôr termo a essas desconfianças — sugeriu o vizir — vamos
submeter o nosso hóspede a uma prova decisiva.
E
dizendo isso, ergueu-se da cômoda almofada e, tomando delicadamente
Beremiz pelo braço, conduziu-o até uma das varandas do palácio.
Abria
essa varanda para o segundo pátio lateral que, no momento,
desbordava de camelos. E que lindos espécimes! Quase todos pareciam
de boa raça. Avistei, de pronto, dois ou três brancos, da mongólia,
e vários carehs , de pelo claro.
— Eis
aí — disse o vizir — a bela partida de camelos que comprei ontem
e que pretendo enviar, como dote, ao pai de minha noiva. Sei
precisamente, sem erro possível, quantos são!
E
o vizir, para tornar mais interessante a prova, enunciou, em segredo,
ao ouvido de seu amigo Iezid, o poeta, o número total das alimárias.
— Quero
agora — prosseguiu, voltando-se para Beremiz — que o nosso
calculista diga quantos camelos se acham no pátio, diante de nós.
Fiquei
apreensivo com o caso. Os camelos eram numerosos e confundiam-se no
meio da agitação em que se achavam. Se o meu amigo, por um
descuido, errasse no cálculo, a nossa visita teria, como
consequência, o mais doloroso fracasso. Depois de correr os olhos
pela irrequieta cáfila, o inteligente Beremiz disse:
—
Senhor Vizir! Quero crer que se
encontram, agora, neste pátio, 257 camelos!
— É
isso mesmo — confirmou o vizir. — Acertou. O total é realmente
esse: 257! Kelimet-Uallah!
— E como chegou a esse resultado tão depressa, e com tanta
precisão? — indagou, com indisfarçável curiosidade, o poeta
Iezid.
— Muito
simplesmente — explicou Beremiz. — Contar os camelos, um por um,
seria, a meu ver, tarefa sem interesse, do valor de uma bagatela.
Para tornar mais interessante o problema, procedi da seguinte forma:
Contei primeiro todas as pernas e em seguida as orelhas: achei, desse
modo, um total de 1.541. A este total juntei uma unidade, e dividi o
resultado por 6. Feita essa pequena divisão, encontrei o quociente
exato: 257!
— Pela
glória da Caaba! — clamou, com alegria, o vizir. — Isso tudo é
originalíssimo e estupendo! Quem pudera imaginar que esse
calculista, para tornar mais interessante o problema, fosse capaz de
contar todas as pernas e orelhas de 257 camelos!
E
repetiu com sincero entusiasmo:
— Pela
glória da Caaba!
— Devo
dizer, senhor Vizir — retorquiu Beremiz —, que os cálculos se
tornam, às vezes, complicados e difíceis em consequência do
descuido ou da falta de habilidade do calculista. Certa vez, em Khói,
na Pérsia, quando vigiava o rebanho de meu amo, passou pelo céu um
bando de borboletas. Um pastor, a meu lado, perguntou-me se eu
poderia contá-las. “São oitocentas e cinquenta e seis!” —
respondi. “Oitocentas e cinquenta e seis!” — exclamou o meu
companheiro, como se achasse exagerado aquele total. Só então
verifiquei que por descuido havia contado não as borboletas, mas as
suas asas. Feita a necessária divisão por 2, encontrei, a seguir, o
resultado certo.
Ao
ouvir o relato desse caso, expandiu-se o vizir em estrepitosa risada
que soava, aos meus ouvidos, como se fora uma música deliciosa.
— Há
nisso tudo — interveio, muito sério, o poeta Iezid — uma
particularidade que me escapa ao raciocínio. A divisão por 6
aceitável, uma vez que cada camelo tem 4 patas e 2 orelhas e a soma
(4 + 2) é igual a 6. Não compreendo, porém, é a razão que o
levou a juntar 1 ao total antes de dividi-lo por 6!
— Nada
mais simples — acudiu logo Beremiz. — Ao contar as orelhas, notei
que um dos camelos era defeituoso (só tinha uma orelha). Para que a
conta ficasse certa era preciso acrescentar 1 ao total obtido.
E,
voltando-se para o vizir, perguntou:
— Seria
indiscrição ou imprudência de minha parte perguntar-vos, ó Vizir,
qual a idade daquela que tem a ventura de ser vossa noiva?
— De
modo algum — respondeu, risonho, o ministro. — Astir tem 16 anos!
E
acrescentou, sublinhando as palavras com um ligeiro tom de
desconfiança:
— Mas
não vejo relação alguma, senhor calculista, entre a idade da minha
noiva e os camelos que vou oferecer, de presente, ao meu futuro
sogro!
—
Desejo apenas — refletiu Beremiz —
fazer-vos uma pequena sugestão. Se retirardes da cáfila o tal
camelo defeituoso (sem orelha) o total passará a ser de 256. Ora,
256 é o quadrado de 16, isto é, 16 vezes 16. O presente oferecido
ao pai da encantadora Astir tomará, desse modo, feição altamente
matemática: O número de camelos que formam o lote é igual ao
quadrado da idade da noiva! Além do mais, o número 256 é potência
exata do número 2 (que para os antigos é número simbólico), ao
passo que 257 é primo. Essas relações entre os números quadrados
são de bom augúrio para os apaixonados. Há uma lenda muito
interessante sobre os números quadrados. Quereis ouvi-la?
— Com
muito prazer — respondeu o vizir. — As lendas famosas, quando bem
narradas, são como brincos de ouro para os meus ouvidos.
Depois
de ouvir palavras tão lisonjeiras, o calculista inclinou a cabeça,
num gesto de agradecimento, e começou:
—
Conta-se que o famoso rei Salomão, para
demonstrar a finura e a sabedoria de seu espírito, deu à sua noiva,
a rainha de Sabá — a famosa Belquiss — uma caixa com 529
pérolas. Por que 529? Sabe-se que 529 é o quadrado de 23, isto, é,
529 é igual a 23 multiplicado por 23. E 23 era, exatamente, a idade
da rainha. No caso da jovem Astir, o número 256 virá substituir,
com muita vantagem, o número 529.
Todos
olharam, com certo espanto, para o calculista. E este, em tom calmo e
sereno, prosseguiu:
— Vamos
somar os algarismos de 256. Obtemos a soma 13. O quadrado de 13 é
169. Vamos, agora, somar os algarismos de 169. A soma dos algarismos
de 169 é 16. Existe, portanto, entre os números 13 e 16, uma
curiosa relação que poderia ser chamada a “amizade quadrática”.
Realmente, se os números falassem, poderíamos ouvir o seguinte
diálogo. O Dezesseis diria ao Treze:
— Quero
prestar-te uma homenagem, meu caro. O meu quadrado é 256 e a soma
dos algarismos desse quadrado é 13.
O
Treze responderia:
—
Agradeço a tua gentileza, meu amigo, e
quero retribuí-la na mesma moeda. O meu quadrado é 169 e a soma dos
algarismos desse quadrado é 16.
Parece-me
que justifiquei cabalmente a preferência que deve ser dada ao número
256 que excede, por suas singularidades, o número 257.
— A
sua ideia é bastante curiosa — concordou, prontamente, o vizir —,
e vou executá-la, muito embora venha sobre mim pesar a acusação de
plagiário do grande Salomão!
E,
dirigindo-se ao poeta, Iezid, rematou:
— Noto
que a inteligência desse calculista não é menor que a sua
habilidade em descobrir analogias e inventar lendas. Muito acertado
andei no momento em que resolvi convidá-lo para meu secretário.
— Sinto
dizer-vos, ilustre Mirza — tornou Beremiz —, que só poderia
aceitar o vosso honroso convite se aqui houvesse também lugar para o
meu bom amigo Hank-Tade-Maiá — o bagdali, que ora se vê
desempregado e sem recursos.
Fiquei
encantado com a delicada lembrança do calculista. Ele procurava,
desse modo, atrair a meu favor a valiosa proteção do poderoso
vizir.
— É
muito justo o seu pedido — condescendeu o vizir. — O seu
companheiro Hank-Tade-Maiá ficará exercendo aqui as funções de
escriba, com o ordenado que lhe couber.
Aceitei,
sem hesitar, a proposta, exprimindo logo ao vizir, e também ao
bondoso Beremiz, o meu reconhecimento.
Malba
Tahan,
in O
homem que calculava
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