terça-feira, 13 de dezembro de 2016

O homem que calculava


Depois da segunda prece, deixamos a Hospedaria do Marreco Dourado e seguimos, a passos rápidos, para a residência do vizir Ibrahim Maluf, ministro do rei.
Ao entrar na rica morada do nobre muçulmano fiquei, realmente, encantado.
Cruzamos pesada porta de ferro e percorremos um corredor estreito, e sempre guiados por um escravo núbio gigantesco (que trazia algemas de ouro no punho esquerdo) fomos conduzidos ao soberbo jardim interno do palácio.
Esse jardim, construído com fino gosto, era ensombrado por duas filas paralelas de laranjeiras. Para esse jardim abriam-se várias portas, algumas das quais deviam servir ao harém do palácio. Duas escravas kafiras que se achavam, descuidadas, colhendo flores, logo que os avistaram correram entre os canteiros e desapareceram atrás das colunas.
Do jardim, que me pareceu alegre e gracioso, passava-se por uma porta estreita, aberta em muro bastante alto, para o primeiro pátio da belíssima vivenda. Digo primeiro porque a residência dispunha de outro pátio na ala esquerda do edifício.
No meio desse primeiro pátio, todo coberto de esplêndido mosaico, relumbrava uma fonte com três repuxos. As três curvas líquidas, formadas no espaço, rebrilhavam ao sol.
Atravessamos o pátio e, sempre guiados pelo escravo das algemas de ouro, fomos levados para o interior do palácio. Cruzamos várias salas ricamente enfeitadas com tapeçarias bordadas com fios de prata e chegamos, finalmente, ao aposento em que se achava o prestigioso ministro do rei.
Fomos encontrá-lo recostado em grandes almofadas, a palestrar com dois de seus amigos.
Um deles (logo reconheci) era o xeque Salém Nasair, nosso companheiro de aventuras no deserto; o outro era um homem baixo, de rosto redondo, fisionomia bondosa, a barba ligeiramente grisalha. Trajava com apurado gosto e ostentava no peito uma medalha de forma retangular, tendo uma das metades amarela, cor de ouro, e outra escura como bronze.
O vizir Maluf recebeu-nos com demonstrações de viva simpatia. Dirigindo-se ao homem da medalha, disse, risonho:
Eis aí, meu caro Iezid, o nosso grande calculista. Este jovem que o acompanha é um bagdali que o descobriu, por acaso, quando jornadeava pelos caminhos de Alá.
Dirigimos respeitoso salã ao nobre xeque. Soubemos, mais tarde, que se tratava de brilhante poeta — Iezid Abdul-Hamid — amigo e confidente do califa Al-Motacém. Aquela medalha singular ele a recebera, como prêmio, das mãos do califa, por ter escrito um poema com trinta mil e duzentos versos sem empregar uma única vez as letras Kaf, Iam e ayn.
Custa-me acreditar, amigo Maluf — declarou, em tom risonho, o poeta Iezid —, nas façanhas prodigiosas levadas a termo por esse calculista persa. Quando os números se combinam, aparecem, também, os artifícios de cálculo e as sutilezas algébricas. Ao rei El-Harit, filho de Modad, apresentou-se certa vez um mago, que afirmava poder ler na areia o destino dos homens. “O senhor faz cálculos?” — perguntou o rei. E antes que o mago despertasse do espanto em que se achava, o monarca ajuntou: “Se não faz cálculo, suas previsões nada valem: se as obtém pelo cálculo, duvido muito delas.” Aprendi na Índia um provérbio que diz: “É preciso desconfiar sete vezes do cálculo e cem vezes do matemático.”
Para pôr termo a essas desconfianças — sugeriu o vizir — vamos submeter o nosso hóspede a uma prova decisiva.
E dizendo isso, ergueu-se da cômoda almofada e, tomando delicadamente Beremiz pelo braço, conduziu-o até uma das varandas do palácio.
Abria essa varanda para o segundo pátio lateral que, no momento, desbordava de camelos. E que lindos espécimes! Quase todos pareciam de boa raça. Avistei, de pronto, dois ou três brancos, da mongólia, e vários carehs , de pelo claro.
Eis aí — disse o vizir — a bela partida de camelos que comprei ontem e que pretendo enviar, como dote, ao pai de minha noiva. Sei precisamente, sem erro possível, quantos são!
E o vizir, para tornar mais interessante a prova, enunciou, em segredo, ao ouvido de seu amigo Iezid, o poeta, o número total das alimárias.
Quero agora — prosseguiu, voltando-se para Beremiz — que o nosso calculista diga quantos camelos se acham no pátio, diante de nós.
Fiquei apreensivo com o caso. Os camelos eram numerosos e confundiam-se no meio da agitação em que se achavam. Se o meu amigo, por um descuido, errasse no cálculo, a nossa visita teria, como consequência, o mais doloroso fracasso. Depois de correr os olhos pela irrequieta cáfila, o inteligente Beremiz disse:
Senhor Vizir! Quero crer que se encontram, agora, neste pátio, 257 camelos!
É isso mesmo — confirmou o vizir. — Acertou. O total é realmente esse: 257! Kelimet-Uallah! — E como chegou a esse resultado tão depressa, e com tanta precisão? — indagou, com indisfarçável curiosidade, o poeta Iezid.
Muito simplesmente — explicou Beremiz. — Contar os camelos, um por um, seria, a meu ver, tarefa sem interesse, do valor de uma bagatela. Para tornar mais interessante o problema, procedi da seguinte forma: Contei primeiro todas as pernas e em seguida as orelhas: achei, desse modo, um total de 1.541. A este total juntei uma unidade, e dividi o resultado por 6. Feita essa pequena divisão, encontrei o quociente exato: 257!
Pela glória da Caaba! — clamou, com alegria, o vizir. — Isso tudo é originalíssimo e estupendo! Quem pudera imaginar que esse calculista, para tornar mais interessante o problema, fosse capaz de contar todas as pernas e orelhas de 257 camelos!
E repetiu com sincero entusiasmo:
Pela glória da Caaba!
Devo dizer, senhor Vizir — retorquiu Beremiz —, que os cálculos se tornam, às vezes, complicados e difíceis em consequência do descuido ou da falta de habilidade do calculista. Certa vez, em Khói, na Pérsia, quando vigiava o rebanho de meu amo, passou pelo céu um bando de borboletas. Um pastor, a meu lado, perguntou-me se eu poderia contá-las. “São oitocentas e cinquenta e seis!” — respondi. “Oitocentas e cinquenta e seis!” — exclamou o meu companheiro, como se achasse exagerado aquele total. Só então verifiquei que por descuido havia contado não as borboletas, mas as suas asas. Feita a necessária divisão por 2, encontrei, a seguir, o resultado certo.
Ao ouvir o relato desse caso, expandiu-se o vizir em estrepitosa risada que soava, aos meus ouvidos, como se fora uma música deliciosa.
Há nisso tudo — interveio, muito sério, o poeta Iezid — uma particularidade que me escapa ao raciocínio. A divisão por 6 aceitável, uma vez que cada camelo tem 4 patas e 2 orelhas e a soma (4 + 2) é igual a 6. Não compreendo, porém, é a razão que o levou a juntar 1 ao total antes de dividi-lo por 6!
Nada mais simples — acudiu logo Beremiz. — Ao contar as orelhas, notei que um dos camelos era defeituoso (só tinha uma orelha). Para que a conta ficasse certa era preciso acrescentar 1 ao total obtido.
E, voltando-se para o vizir, perguntou:
Seria indiscrição ou imprudência de minha parte perguntar-vos, ó Vizir, qual a idade daquela que tem a ventura de ser vossa noiva?
De modo algum — respondeu, risonho, o ministro. — Astir tem 16 anos!
E acrescentou, sublinhando as palavras com um ligeiro tom de desconfiança:
Mas não vejo relação alguma, senhor calculista, entre a idade da minha noiva e os camelos que vou oferecer, de presente, ao meu futuro sogro!
Desejo apenas — refletiu Beremiz — fazer-vos uma pequena sugestão. Se retirardes da cáfila o tal camelo defeituoso (sem orelha) o total passará a ser de 256. Ora, 256 é o quadrado de 16, isto é, 16 vezes 16. O presente oferecido ao pai da encantadora Astir tomará, desse modo, feição altamente matemática: O número de camelos que formam o lote é igual ao quadrado da idade da noiva! Além do mais, o número 256 é potência exata do número 2 (que para os antigos é número simbólico), ao passo que 257 é primo. Essas relações entre os números quadrados são de bom augúrio para os apaixonados. Há uma lenda muito interessante sobre os números quadrados. Quereis ouvi-la?
Com muito prazer — respondeu o vizir. — As lendas famosas, quando bem narradas, são como brincos de ouro para os meus ouvidos.
Depois de ouvir palavras tão lisonjeiras, o calculista inclinou a cabeça, num gesto de agradecimento, e começou:
Conta-se que o famoso rei Salomão, para demonstrar a finura e a sabedoria de seu espírito, deu à sua noiva, a rainha de Sabá — a famosa Belquiss — uma caixa com 529 pérolas. Por que 529? Sabe-se que 529 é o quadrado de 23, isto, é, 529 é igual a 23 multiplicado por 23. E 23 era, exatamente, a idade da rainha. No caso da jovem Astir, o número 256 virá substituir, com muita vantagem, o número 529.
Todos olharam, com certo espanto, para o calculista. E este, em tom calmo e sereno, prosseguiu:
Vamos somar os algarismos de 256. Obtemos a soma 13. O quadrado de 13 é 169. Vamos, agora, somar os algarismos de 169. A soma dos algarismos de 169 é 16. Existe, portanto, entre os números 13 e 16, uma curiosa relação que poderia ser chamada a “amizade quadrática”. Realmente, se os números falassem, poderíamos ouvir o seguinte diálogo. O Dezesseis diria ao Treze:
Quero prestar-te uma homenagem, meu caro. O meu quadrado é 256 e a soma dos algarismos desse quadrado é 13.
O Treze responderia:
Agradeço a tua gentileza, meu amigo, e quero retribuí-la na mesma moeda. O meu quadrado é 169 e a soma dos algarismos desse quadrado é 16.
Parece-me que justifiquei cabalmente a preferência que deve ser dada ao número 256 que excede, por suas singularidades, o número 257.
A sua ideia é bastante curiosa — concordou, prontamente, o vizir —, e vou executá-la, muito embora venha sobre mim pesar a acusação de plagiário do grande Salomão!
E, dirigindo-se ao poeta, Iezid, rematou:
Noto que a inteligência desse calculista não é menor que a sua habilidade em descobrir analogias e inventar lendas. Muito acertado andei no momento em que resolvi convidá-lo para meu secretário.
Sinto dizer-vos, ilustre Mirza — tornou Beremiz —, que só poderia aceitar o vosso honroso convite se aqui houvesse também lugar para o meu bom amigo Hank-Tade-Maiá — o bagdali, que ora se vê desempregado e sem recursos.
Fiquei encantado com a delicada lembrança do calculista. Ele procurava, desse modo, atrair a meu favor a valiosa proteção do poderoso vizir.
É muito justo o seu pedido — condescendeu o vizir. — O seu companheiro Hank-Tade-Maiá ficará exercendo aqui as funções de escriba, com o ordenado que lhe couber.
Aceitei, sem hesitar, a proposta, exprimindo logo ao vizir, e também ao bondoso Beremiz, o meu reconhecimento.
Malba Tahan, in O homem que calculava

Nenhum comentário:

Postar um comentário