quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Uma criança

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Menino lendo (1961), Susan Dorothea White

Há livros que se lê uma vez e depois joga-se fora. Lidos, esgotaram o que tinham para dizer. Parecem-se com as piadas: as piadas só fazem rir na primeira vez que são contadas. Outros livros, entretanto, são como fontes. A fonte é a mesma. Mas a água que dela brota é sempre fresca, sempre nova, sempre outra água. Retornamos sempre às fontes. Cada retorno é uma felicidade nova. Na minha infância havia uma fonte, um buraco simples em forma de bacia, que me dava grande alegria visitar. Não que eu estivesse com sede. Apenas para me encantar. Daquela fonte nem meu pai nem minha mãe ficaram sabendo. Vocês são os primeiros a quem estou contando. Que felicidade encontrei na minha infância, solto por espaços vazios de olhos adultos! Os adultos estragam o mundo das crianças com os seus olhos. Diante da fonte, minha amiga, eu estava sozinho, absolutamente sozinho. Guimarães Rosa, falando de sua infância, disse que ela foi muito gostosa. A única coisa que a atrapalhava eram os olhos dos adultos que se intrometiam em tudo. Livrou-se disso quando arranjou uma chave para o seu quarto. Trancado, podia gozar livremente os seus devaneios. Esses livros-fonte não são de diversão. São livros de encantamento. A sua leitura é como beber água da fonte, sempre. Por isso sempre voltamos a eles. Um dos livros-fonte que mais me encantam é A poética do devaneio, de Bachelard. Volto sempre a ele e é sempre como se fosse pela primeira vez. Um curto texto que me encanta: “Nos grandes infortúnios da vida, ganhamos coragem quando somos o sustentáculo de uma criança. A inquietação que temos pela criança sustenta uma coragem invencível” (São Paulo, Livraria Martins Fontes, p. 127). Esse livro maravilhoso nunca foi e nunca será best-seller. É uma fonte escondida da qual poucos bebem. Quando muitos bebem na mesma fonte, a água fica poluída. Lembrei-me desse texto ao pensar num dos demônios mais potentes a habitar a alma humana: o tédio. Viver sem razões para viver. Pensei logo: só são atacadas pelo demônio tédio as pessoas que não são sustentáculo de uma criança, que não se inquietam por uma criança. O tédio, nenhum exorcista pode com ele. Nenhum terapeuta sabe as palavras que o afugentam. O tédio se cura com o olhar de uma criança. Há tantas crianças soltas pelas ruas da cidade, prontas a salvar-nos do tédio…
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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