Menino lendo (1961), Susan Dorothea White
Há
livros que se lê uma vez e depois joga-se fora. Lidos, esgotaram o
que tinham para dizer. Parecem-se com as piadas: as piadas só fazem
rir na primeira vez que são contadas. Outros livros, entretanto, são
como fontes. A fonte é a mesma. Mas a água que dela brota é sempre
fresca, sempre nova, sempre outra água. Retornamos sempre às
fontes. Cada retorno é uma felicidade nova. Na minha infância havia
uma fonte, um buraco simples em forma de bacia, que me dava grande
alegria visitar. Não que eu estivesse com sede. Apenas para me
encantar. Daquela fonte nem meu pai nem minha mãe ficaram sabendo.
Vocês são os primeiros a quem estou contando. Que felicidade
encontrei na minha infância, solto por espaços vazios de olhos
adultos! Os adultos estragam o mundo das crianças com os seus olhos.
Diante da fonte, minha amiga, eu estava sozinho, absolutamente
sozinho. Guimarães Rosa, falando de sua infância, disse que ela foi
muito gostosa. A única coisa que a atrapalhava eram os olhos dos
adultos que se intrometiam em tudo. Livrou-se disso quando arranjou
uma chave para o seu quarto. Trancado, podia gozar livremente os seus
devaneios. Esses livros-fonte não são de diversão. São livros de
encantamento. A sua leitura é como beber água da fonte, sempre. Por
isso sempre voltamos a eles. Um dos livros-fonte que mais me encantam
é A poética do devaneio, de Bachelard. Volto sempre a ele e
é sempre como se fosse pela primeira vez. Um curto texto que me
encanta: “Nos grandes infortúnios da vida, ganhamos coragem quando
somos o sustentáculo de uma criança. A inquietação que temos pela
criança sustenta uma coragem invencível” (São Paulo, Livraria
Martins Fontes, p. 127). Esse livro maravilhoso nunca foi e nunca
será best-seller. É uma fonte escondida da qual poucos
bebem. Quando muitos bebem na mesma fonte, a água fica poluída.
Lembrei-me desse texto ao pensar num dos demônios mais potentes a
habitar a alma humana: o tédio. Viver sem razões para viver. Pensei
logo: só são atacadas pelo demônio tédio as pessoas que não são
sustentáculo de uma criança, que não se inquietam por uma criança.
O tédio, nenhum exorcista pode com ele. Nenhum terapeuta sabe as
palavras que o afugentam. O tédio se cura com o olhar de uma
criança. Há tantas crianças soltas pelas ruas da cidade, prontas a
salvar-nos do tédio…
Rubem
Alves, in
Ostra feliz não faz pérola
Estou lendo este livro...o Rubem tem esse potencial de tirar o tédio pra brincar...
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