quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Ascendências

Uma vez o nosso grupo decidiu comparar árvores genealógicas e, como estivéssemos naquela idade em que ninguém com mais de 40 anos nos interessava muito, ainda mais da família, cada um inventou o que pôde. Eu improvisei um remoto príncipe calabrês entre meus antepassados, outro disse que era “meio Orleans e Bragança”, mas quem ganhou nossa admiração maior foi o Binho, que declarou o seguinte: era descendente de um meio-irmão de Jesus Cristo.
- O quê?!
Binho manteve a ascendência em meio à descrença geral, sem piscar. E ainda elaborou. Se havia alguém com sobra de razões para ter outra mulher, era São José. Ele tivera filhos com a outra. Um desses filhos dera início a uma linhagem que acabara no velho Moisés, pai do Binho, que emigrara para o Brasil.
- Espera um pouquinho. Na Bíblia não tem nada sobre a outra família do José. Binho sorriu com superioridade. E ia ter? Logo na Bíblia?
- E por que a sua família nunca falou nada?
O consenso no grupo era de que uma descendência como aquela merecia destaque nacional. Talvez até valesse dinheiro. O pai do Binho podia ter alguma coisa a receber no Vaticano, sei lá.
O Binho continuou sorrindo com a nossa ignorância. Era claro que a família não podia falar nada a respeito. O velho José sempre fora muito discreto. Não podiam trair o segredo do antepassado ilustre.
O fato é que a revelação do Binho mexeu conosco. No dia seguinte o Tuca apareceu com a notícia. Soubera em casa que eles também eram parentes de uma figura histórica importantíssima.
- Quem?
- Hércules.
Luís Fernando Veríssimo, in As mentiras que os homens contam

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