“O
senhor imagina o que é isso para uma pessoa moça que se esforça
para melhorar de vida? As taxas pagas, o dinheiro dos professores,
das passagens, o tempo perdido, a decepção...”
A
história que essa carta me conta é triste e banal. Houve um
concurso para escriturário de determinada autarquia. A moça
inscreveu-se, tomou cursos, estudou meses, fez as provas, foi
aprovada, foi classificada, chorou de alegria quando a mãe a beijou,
ficou esperando a nomeação, passaram-se dois anos, ela não foi
nomeada e o concurso não vale mais.
O
Estado, no Brasil, é um brincalhão.
Um
homem me conta história idêntica: “gastei tempo, dinheiro e
saúde, passei noites em claro, fiquei até doente dos olhos...
deixei de levar minha filhinha a passear aos domingos... tudo em
troca de nada... sou um ‘otário’...”
O
pior é que os dois me pedem conselho. Só posso dizer que continuem
a se esforçar e a ser bonzinhos, pois Deus protege os inocentes. Ou
então o remédio é nascer outra vez, em uma família conveniente.
Eu poderia fornecer aqui o nome de algumas famílias convenientes,
isto é, famílias onde as mocinhas e os rapazes são nomeados, sem
concurso nenhum, para cargos esplêndidos.
É
verdade que há sujeitos admiráveis que, mesmo não pertencendo a
essas famílias, conseguem coisas impressionantes. O diabo é que
eles não revelam sua técnica. O DASP deveria requisitar um desses
cavalheiros e encarregá-lo de escrever um livro no estilo de Dale
Carnegie: Como Fazer Amigos e Arranjar uma Galinha-Morta no Serviço
Público Federal.
Foi
em Minas, creio, que um secretário de Estado mandou afixar em sua
repartição esta frase com um conselho aos funcionários: “Não
basta despachar o papel, é preciso resolver o caso.”
Quem
fez isso devia ser um empírico, sem uma verdadeira e fina vocação
burocrática. O exemplo mais brilhante dessa vocação deu-o anos
atrás um cavalheiro cujo nome não sei; era presidente da Câmara
Municipal de S. João de Meriti.
Foi
o caso que morreu um vereador, e seu suplente quis tomar posse. O
presidente exigiu dele a certidão de óbito do vereador. O suplente
disse que não a trouxera, mas podia providenciar depois; achava,
entretanto, que não havia inconveniente em tomar posse naquela mesma
sessão...
O
presidente respondeu:
— Não
é questão de conveniência ou inconveniência. O que há é
impossibilidade. O suplente não pode se empossar sem estar provada a
morte do vereador.
— Mas
V. Ex.ª não ignora que o vereador morreu...
— A
prova do falecimento é a certidão de óbito.
— Mas
V. Ex.ª tomou conhecimento oficial da morte; V. Ex. a , como
presidente da Mesa, praticou vários atos oficiais motivados por essa
morte!
— A
prova do falecimento é a certidão de óbito.
— Mas
o morto foi velado neste recinto. O enterro saiu desta sala, desta
Câmara.
— A
prova do falecimento é a certidão de óbito.
— Mas
V. Ex.ª segurou uma das alças do caixão!
— A
prova do falecimento é a certidão de óbito.
E
não se foi adiante, enquanto o suplente não apresentou a certidão
de óbito. Todos os argumentos esbarravam naquela frase
irretorquível, perfeita, quase genial, que mereceria ser gravada em
mármore no frontispício do DASP: “A prova do falecimento é a
certidão de óbito.” Só os medíocres, os anarquistas e os
pobres-diabos, condenados a vida inteira a ser suplicantes ou
requerentes e que jamais serão Autoridade, não percebem a profunda
beleza dessa frase. Eles jamais compreenderão que uma pessoa não
pode existir sem certidão de nascimento nem pode deixar de existir
sem certidão de óbito. Que acima da vida e da morte, do bem e do
mal, da felicidade e da desgraça está esta coisa sacrossanta: o
papel.
Eu
também quero fazer uma frase. Proponho que o DASP investigue o nome
daquele antigo presidente da Câmara Municipal de São João de
Meriti e, no dia em que ele morrer, mande gravar em seu túmulo
(depois, naturalmente, de apresentada a certidão de óbito) esta
frase de suprema consagração burocrática: “Ele amou o papel.”
Rubem
Braga, in Ai de ti, Copacabana
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