terça-feira, 1 de novembro de 2016

O veredicto (trecho inicial)

Era uma manhã de domingo no auge da primavera. Georg Bendemann, um jovem comerciante, estava sentado no seu quarto, no primeiro andar de um dos prédios baixos, de construção leve, que se estendiam em longa fila ao longo do rio, diferentes um do outro quase só na altura e na cor. Tinha justamente acabado de escrever uma carta a um amigo que se achava no estrangeiro, fechou-a com uma lentidão lúdica e depois, o cotovelo apoiado sobre a escrivaninha, olhou da janela para o rio, para a ponte e para as colinas da outra margem, com o seu verde sem vigor.
Ficou pensando como esse amigo, insatisfeito com suas perspectivas na própria terra, já fazia anos havia literalmente se refugiado na Rússia. Tinha agora uma casa comercial em São Petersburgo, que a princípio havia caminhado muito bem, mas que parecia há muito ter estacionado, conforme se queixava o amigo nas suas visitas cada vez mais raras. Assim é que ele se desgastava inutilmente no estrangeiro: a exótica barba cheia ocultava mal o rosto tão conhecido desde os anos de infância, e a cor amarela da pele parecia apontar para uma moléstia em evolução. Como ele contava, lá não mantinha nenhuma ligação autêntica com a colônia dos seus conterrâneos e quase nenhum contato social com as famílias do lugar, de maneira que se encaminhava definitivamente para a vida de solteiro.
O que se devia escrever a um homem assim, que evidentemente tinha saído fora dos trilhos e a quem se podia lastimar mas não prestar auxílio? Devia-se talvez aconselhá-lo a voltar de novo para casa, a transferir para cá sua existência, a retomar as velhas relações de amizade — para o que certamente não havia obstáculo algum — e no mais confiar na ajuda dos amigos? Mas isso não significava outra coisa senão estar ao mesmo tempo lhe dizendo, de uma maneira tanto mais ofensiva quanto maior a consideração, que suas tentativas até agora tinham malogrado, que ele devia finalmente desistir delas, regressar e permitir que todos o olhassem com espanto como a alguém para sempre de volta, que só os seus amigos sabiam um pouco das coisas e que ele era uma criança crescida, pura e simplesmente necessitada de seguir os companheiros bem-sucedidos que haviam permanecido em casa. E além do mais, era mesmo certo que todo esse transtorno, que seria preciso infligir a ele, tivesse um sentido? Talvez não se conseguisse nem ao menos trazê-lo de volta — ele mesmo afirmou que não entendia mais as condições vigentes no seu país —, e desse modo, a despeito de tudo, talvez continuasse na terra estranha, amargurado com os conselhos e um pouco mais distanciado dos amigos. Se ele porém seguisse de fato o conselho e — naturalmente sem essa intenção, mas em virtude dos fatos — fosse esmagado, não se encontrasse nos seus amigos nem sem eles, sofresse com o vexame, de fato então não possuísse lar ou amigos, nesse caso não teria sido muito melhor para ele ficar no estrangeiro, do modo como estava? Era possível, em tais circunstâncias, pensar que aqui ele iria efetivamente levar as coisas avante?
Por essas razões, mesmo que se quisesse manter a ligação por correspondência, não se podia na verdade transmitir a ele nenhuma comunicação real, como se faria sem temor até aos conhecidos mais distantes. O amigo já não vinha ao país fazia mais de três anos e explicava muito precariamente esse fato pela incerteza da situação política na Rússia, que não permitiria nem mesmo a mais breve ausência de um pequeno comerciante, ao passo que centenas de milhares de russos circulavam tranquilamente pelo mundo. Para Georg, entretanto, muita coisa havia mudado no curso desses três anos. Sobre a morte da mãe de Georg, que havia ocorrido dois anos antes, e depois da qual ele passara a viver em comum com o velho pai na mesma casa, o amigo naturalmente tinha recebido notícia e manifestado o seu pesar numa carta de tamanha secura que o motivo só podia ser que no estrangeiro o luto por um acontecimento dessa natureza é inteiramente inconcebível. Mas desde aquela época Georg havia assumido com maior determinação o negócio, bem como tudo o mais. Talvez o pai, enquanto a mãe era viva, por querer fazer valer só o seu próprio ponto de vista na firma, o tivesse impedido de exercer uma atividade pessoal efetiva; talvez o pai, desde a morte da mãe, embora ainda continuasse trabalhando no estabelecimento, tivesse ficado mais retraído; talvez — o que era até muito provável — acasos felizes houvessem desempenhado um papel muito mais importante; fosse como fosse, porém, nesses dois anos a firma tinha se desenvolvido de um modo totalmente inesperado, fora preciso dobrar o pessoal, o movimento havia quintuplicado e sem dúvida se estava na iminência de um novo avanço. Mas o amigo não fazia ideia dessa mudança. Anteriormente — talvez pela última vez naquela carta de pêsames — tinha querido convencer Georg a emigrar para a Rússia, estendendo-se sobre as perspectivas que existiam em São Petersburgo justamente para o ramo comercial de Georg. As cifras desapareciam diante do volume que os negócios de Georg tinham alcançado. Mas este não havia sentido vontade alguma de escrever ao amigo sobre seus êxitos comerciais, e caso o tivesse feito agora, em retrospecto, isso realmente teria adquirido uma aparência estranha.
Assim sendo, Georg se limitava sempre a escrever ao amigo só sobre incidentes insignificantes, da maneira como estes se acumulam desordenadamente na lembrança, quando se reflete sobre eles num domingo tranquilo. Ele não pretendia senão deixar inalterada a imagem que o amigo, no decorrer do longo intervalo, tinha feito da cidade natal e à qual se havia conformado. Aconteceu assim que Georg, em cartas bem distantes uma da outra, anunciou por três vezes o noivado de uma pessoa sem importância com uma moça igualmente sem importância, até que o amigo, na realidade contra as intenções de Georg, começou a se interessar por essa ocorrência notável.
Mas Georg preferia escrever-lhe sobre coisas como essa a admitir que ele próprio tinha ficado noivo, um mês atrás, da senhorita Frieda Brandenfeld, uma jovem de família bem situada. Muitas vezes conversou com a noiva sobre esse amigo e a situação peculiar da correspondência que mantinha com ele.
Então ele não virá de modo algum para o nosso casamento — dizia ela. — E eu tenho o direito de conhecer todos os seus amigos.
Não quero perturbá-lo — respondia Georg. — Entenda bem, é provável que ele viesse, pelo menos é o que acredito; mas iria se sentir forçado e prejudicado, talvez ficasse com inveja de mim; e certamente insatisfeito e incapaz de pôr de lado essa insatisfação, regressaria sozinho. Sozinho — você sabe o que é isso?
Sim, eu sei, mas ele não pode ficar sabendo do nosso casamento de outra maneira?
Seja como for, isso eu não posso evitar; mas, vivendo como vive, é improvável.
Se você tem amigos assim, Georg, não devia ter ficado noivo.
Bem, a culpa é de nós dois; mas mesmo agora eu não queria que as coisas fossem diferentes.
E quando ela, então, respirando rápido sob seus beijos, ainda argumentava: “na verdade isso me ofende”, ele achou que realmente não era embaraçoso escrever tudo ao amigo.
Eu sou assim e é assim que ele tem de me aceitar”, disse consigo. “Não posso talhar em mim mesmo uma pessoa que talvez fosse mais ajustada à amizade com ele do que eu sou.”
Franz Kafka, in O veredicto

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