sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A terra, "este vale de lágrimas"

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/8a/d3/81/8ad38110d2fd1aa5879f27a83421f11e.jpg 

Havia estrelas cadentes. As luzes de Comala se apagaram.
Então o céu tomou conta da noite.
O padre Rentería se revirava na cama sem conseguir dormir:
Tudo isso que está acontecendo é por minha culpa — disse a si mesmo. — O temor de ofender os que me apoiam. Porque a verdade é esta; eles me mantêm. Dos pobres não consigo nada; orações não enchem barriga. Assim foi até agora. E estas são as consequências. Minha culpa. Eu traí aqueles que gostam de mim e que me deram sua fé e que me procuram para que eu interceda por eles diante de Deus. Mas o que conseguiram com sua fé? Ganharam o céu? Ou a purificação de suas almas? E purificar as almas para quê, se no último momento... Ainda tenho diante de meus olhos o olhar de Maria Dyada, que veio pedir que eu salvasse sua irmã Eduviges:
“— Ela sempre serviu aos seus semelhantes. Deu a eles tudo que teve. Até um filho deu, a todos. E o colocou na frente de todo mundo para ver se alguém o reconhecia como seu; mas ninguém quis fazer isso. Então ela disse a eles: ‘Neste caso, eu também sou o pai, mesmo que por coincidência também seja a mãe.’ Abusaram da sua hospitalidade por causa daquela sua bondade de não querer ofender nem ser malquista por ninguém.
“— Mas ela se suicidou. Obrou contra a mão de Deus.
“— Era a única saída. E decidiu isso por causa da sua bondade.
“— Falhou no momento final — foi isso que eu disse a ela. — No último instante. Tantos bens acumulados para a sua salvação, e perdeu tudo de repente!
“— Mas é que não perdeu. Morreu cheia de muitas dores. E a dor... O senhor nos falou uma coisa sobre a dor, que eu não lembro mais. Ela foi-se embora por causa dessa dor. Morreu retorcida pelo sangue que a afogava. Ainda vejo sua cara, e sua cara era o gesto mais triste jamais feito por um ser humano.
“— Talvez se a gente rezar muito.
“— Pois vamos rezando muito, padre.
“— Digo talvez, quem sabe?, com as missas gregorianas; mas para isso precisamos pedir ajuda, mandar vir sacerdotes. E tudo custa dinheiro.
Lá estava, na frente dos meus olhos, o olhar de Maria Dyada, uma pobre mulher cheia de filhos.
“— Não tenho dinheiro. O senhor sabe disso, padre.
“— Então vamos deixar as coisas do jeito que estão. Vamos esperar em Deus.
“— Está bem, padre.
Por que aquele olhar tornava-se valente diante da resignação? O que custava a ele perdoar, quando era tão fácil dizer uma ou duas palavras, ou cem, se fossem necessárias para salvar a alma? Que sabia ele do céu e do inferno? E no entanto ele, perdido num povoado sem nome, sabia quem tinha merecido o céu. Havia um catálogo. Começou a percorrer os santos do panteão católico, a começar pelos do dia: “Santa Nunilona, virgem e mártir; Anercio, bispo; Santas Salomé, viúva, Alódia ou Elódia e Nulina, virgens; Córdula e Donato.” E continuou. Já começava a ser dominado pelo sono quando se sentou na cama: “Estou repassando uma fileira de santos como se estivesse vendo carneiros saltarem.”
Saiu da casa e olhou o céu. Choviam estrelas. Lamentou aquilo, porque teria gostado de ver um céu quieto. Ouviu o canto dos galos. Sentiu a envoltura da noite cobrindo a terra. A terra, “este vale de lágrimas”.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

Nenhum comentário:

Postar um comentário