terça-feira, 8 de novembro de 2016

A idade da discrição (trecho)

Meu relógio parou? Não. Mas os ponteiros parecem não andar. Não olhar para eles... Pensar em outra coisa, em qualquer coisa: nesse dia que passou, tranquilo e rotineiro apesar da agitação da espera.
Enternecimento do acordar... André estava enrodilhado no leito, olhos vendados, mãos postas contra a parede num gesto infantil, como se no desamparo do sono tivesse necessitado experimentar a solidez do mundo. Sentei-me à borda do leito, coloquei a mão sobre seu ombro. Tirou a venda dos olhos, um sorriso desenhou-se em seu rosto espantado.
São oito horas!
Coloquei na biblioteca a bandeja da primeira refeição. Peguei um livro recebido na véspera e já folheado pela metade. Cacetes todas essas lengalengas sobre a não-comunicação! Bem ou mal conseguimos nos comunicar, se o queremos. Não com todo o mundo, é claro, mas com duas ou três pessoas. Às vezes, acontece-me não falar a André sobre estados de ânimo, pequenos cuidados, tristezas. Sem dúvida, ele também tem seus segredinhos, mas grosso modo não ignoramos nada um do outro.
Derramei nas xícaras chá-da-China bem quente, bem escuro. Bebemos enquanto percorríamos a correspondência: o sol de julho entrava em caudais no aposento. Quantas vezes ficamos sentados junto à mesinha, em frente um do outro e diante de xícaras de chá bem escuro e bem quente? Será assim, em seguida, em um ano, em dez anos?... Este instante possuía a doçura de uma lembrança e a alegria de uma promessa. Teríamos trinta ou sessenta anos? Os cabelos de André branquearam cedo: antigamente, aquilo parecia faceirice de sua parte: a neve realçando a frescura de sua tez. É ainda faceirice. A pele endureceu e fendeu-se, gretada como couro velho, mas o sorriso da boca e dos olhos guardou sua luz. Apesar dos desmentidos do álbum de fotografias, sua jovem figura se curva ante seu rosto de hoje: meu olhar não lhe reconhece idade. Uma longa vida com risos, lágrimas, cóleras, abraços, confissões, silêncios, impulsos, e parece, às vezes, que o tempo não passou. O futuro se esconde, ainda até o infinito. Levantou-se: — Bom trabalho! — me disse.
Para você também: bom trabalho.
Não respondeu. Nesse gênero de pesquisas, inevitavelmente, existem períodos em que se marca passo; ele se resigna menos facilmente que outrora.
Abri a janela. Paris cheirava a asfalto e a tempestade, esmagada pelo calor pesado do estio. Segui André com os olhos. É, talvez, nesses instantes em que o vejo distanciar-se que ele existe para mim com mais perturbadora evidência: a silhueta alta diminui, desenhando a cada passo o caminho de sua volta; ela desaparece, a rua semelha vazia mas, em verdade, é um campo imantado que o reconduzirá a mim como a seu lugar natural. Essa certeza me comove ainda mais que sua presença.
Fiquei bastante tempo no balcão. De meu sexto andar descubro um grande trecho de Paris, o voo dos pombos sobre os tetos de ardósia, e esses falsos vasos de flores que são as chaminés. Conto as gruas: cinco, nove, dez. Conto dez — barram o céu com seus braços de ferro vermelhos e amarelos.
À direita, meu olhar dá de encontro a uma alta muralha crivada de pequeninos buracos: um edifício novo. Vejo também torres, arranha-céus construídos de pouco. Desde quando o terreno baldio do Bulevar Edgar-Quinet tornou-se estacionamento? O aspecto jovem recente da paisagem salta-me aos olhos, todavia não me lembra tê-la visto diversa. Gostaria de olhar lado a lado para os dois clichês: antes e depois e me espantar com a diferença. Mas não. O mundo se constrói sob meus olhos num eterno presente. Habituo-me tão depressa às suas faces que ele não me parece mudar.
Em minha mesa, os fichários, o papel branco, me convidam ao trabalho, mas as palavras que me dançam na cabeça impedem-me a concentração: “Filipe estará aqui esta noite”. Quase um mês de ausência. Entrei em seu quarto onde se espalham ainda livros, papéis, uma velha malha cinza, um pijama violeta — esse quarto que eu não me decido a reformar porque não tenho tempo, dinheiro, porque não quero acreditar que Filipe não é mais meu. Voltei para a biblioteca perfumada por um ramo de rosas frescas, ingênuas como alfaces. Espantei-me por este apartamento jamais ter-me parecido deserto. Nada lhe faltava. Acariciei com o olhar as cores ácidas e ternas das almofadas espalhando-se nos divas. As bonecas polonesas, os salteadores eslovenos, os galos portugueses ocupavam, ajuizadamente, seus lugares. “Filipe estará aqui...” Fiquei desamparada. Pode-se chorar de tristeza mas não é fácil conjurar a impaciência da alegria.
Decidi ir respirar o odor do estio. Um negrão vestido com impermeável azul-elétrico e com chapéu de feltro cinza varria a calçada; antes era um argelino cor de terra. No Bulevar Edgar-Quinet misturei-me a confusão das mulheres. Como não saio nunca de manhã, a feira pareceu-me exótica (tantos mercados matinais sob tantos céus!). A velhinha manquitolava de uma banca a outra, suas madeixas bem puxadas para trás, apertando a alça de sua sacola vazia. Antigamente, eu não me incomodava com os velhos, tomava-os por mortos cujas pernas andassem ainda. Agora, eu os vejo: homens e mulheres apenas um pouco mais velhos que eu. Prestei atenção nesta no dia em que, no açougue, ela pediu restos de carne para o gato. — “Para seus gatos!” — disse o açougueiro quando a velha saiu. “— Ela não tem gatos. Vai mais é aferventar-se um caldo!” O açougueiro achava graça nisso. Daqui a pouco ela recolherá detritos sob as bancas, antes que o negrão os varra para o lixo. Sobreviver com dezoito mil francos por mês! mais de um milhão deles estão nesse caso, e mais três milhões são um pouco menos desvalidos.
Comprei flores, frutos, caminhei a esmo. Ser aposentado e ser um rebotalho parece quase a mesma coisa. A palavra me congelava. Espantava-me a extensão de meus lazeres. Estava errada. O tempo, às vezes, parece custar a passar mas eu me arranjo. E que prazer viver sem obedecer ordens, sem constrangimento! Há ocasiões em que me assombro. Lembro-me do primeiro posto, de minha primeira classe, as folhas mortas que rangiam sob os passos no outono provinciano. Então, o dia da aposentadoria — distante de mim um lapso de tempo duas vezes mais longo ou quase, que minha vida anterior — me parecia irreal como a própria morte. E eis que há um ano ele chegou. Passei outras barreiras, porém fluidas. Esta tem a rigidez de uma cortina de aço.
Simone de Beauvoir, in A mulher desiludida

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