sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Poder de síntese

Um dia, Madame de Sevigné sentenciou: “O café passará, como Racine.” Ah, que poder de síntese, minha cara Madame! Como foi que a senhora conseguiu dizer duas barbaridades numa única frase?
Poder de síntese, esse o tinha, de fato, Racine, quando, para darmos apenas um exemplo, conseguiu expressar a paixão, a crueldade, a complexidade do caráter de Nero num só verso de doze sílabas: “J’aimais jusqu’à ses pleurs, que je faisais couler!” (Eu amava até as suas lágrimas, que eu fazia correrem!)
Sim, porque o verdadeiro sádico ama verdadeiramente a quem faz sofrer. Que o digam esses pretensos casais desunidos, que jamais conseguem separar-se. Só os sádicos? — pergunto eu. Recordemos aquelas palavras de Oscar Wilde, na Balada do cárcere : “A gente sempre mata aquilo que ama; os fortes com um punhal, os covardes com um sorriso.”
Aliás, o Nero do alexandrino raciniano já tinha decretado a morte da sua amada, cujas lágrimas agora tanto o enterneciam.
Haverá os santos do inferno? Nero deverá ter sido um deles...
Porque na verdade é idêntico o nosso pasmo, quase incrédulo, tanto ante a vida de Nero como ante a vida de São Francisco de Assis. Porque os extremos sempre se tocaram. Porque os Santos — no seu prodigioso arrebatamento — são uma espécie de celerados do Bem.

Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

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