terça-feira, 4 de outubro de 2016

Palavra que apunhala

Google Imagens

Recebi um e-mail em inglês que me foi enviado por uma senhora, Lola Degenszjn, nascida na cidade do Cairo, Egito, mas residindo no Brasil há muitos anos. Ela se desculpou dizendo que lia português mas não escrevia bem. Disse-me que gostava das coisas que eu escrevia. Mas uma única palavra que usei foi uma punhalada na sua alma. A palavra, bem... Eu escrevia para as minhas netas e descrevia como era a casa pobre em que vivi, quando menino. Fogão de lenha, luz de lamparina, sem geladeira (não havia eletricidade), as comidas eram guardadas num armário de tela chamado guarda-comida. Foi essa palavra banal que escrevi sem nenhuma emoção que lhe deu a punhalada. “With this I was stabbed”, ela disse. E como que se lembrando, escreveu o nome do guarda-comida em francês: “garde manger”... A punhalada aconteceu porque, ao ler a palavra, ela se viu menina, na sua casa no Cairo. Lá havia um guarda-comida... Tanto tempo se passara! Ela até se esquecera de tal objeto. Ao ler a palavra “guarda-comida” no meu texto ela foi devolvida a uma cena da sua infância: ela, menina, na cozinha de sua casa... Eu e a Lola, agora, nos tornamos amigos ligados por essa palavra banal, “guarda-comida”...
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Nenhum comentário:

Postar um comentário